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Os Observadores

3.5/5

Os Observadores

2024

102 minutos

3.5/5

Diretor: Ishana Night Shyamalan

Em seu primeiro longa-metragem, Ishana Night Shyamalan não nega as suas raízes, construindo um suspense fabular que reverencia o cinema de seu pai.

É bem difícil não comparar o trabalho de estreia de Ishana Night Shyamalan com o trabalho de seu pai. E digo isso não apenas pelo parentesco, mas a própria Ishana se coloca na mira dessa comparação ao escolher fazer um filme que claramente possui total influência do cinema de M. Night. Estruturalmente e tematicamente, “Os Observadores” é bem parecido com muitas das obras que consagraram – e principalmente com as que destruíram perante a crítica americana e a parte do grande público – a carreira do diretor indiano radicado nos Estados Unidos. Cabe dizer que alguns desses filmes “malditos” fazem parte do que considero a fase mais profícua da filmografia do pai de Ishana. Em especial, um desses filmes, “A Dama na Água” de 2006, um dos mais polêmicos do diretor, que combina a já tradicional elegância formal de Shyamalan a uma narrativa fabular repleta de elementos metalinguísticos. Uma história sobre contar histórias. Se tivesse que escolher um filme do pai para fazer paralelos com o lançamento da filha, certamente escolheria “A Dama na Água”.

Isso porque Ishana parte de algumas premissas parecidas. Com o perdão do spoiler (e do trocadilho), “Os Observadores” é literalmente um conto de fadas. O filme se preocupa muito pouco em calcar a sua fantasia em qualquer senso de verossimilhança, em qualquer explicação lógica que justifique os acontecimentos. Assim como M. Night, Ishana simplesmente expõe a mitologia de seu filme e pede que o espectador acredite. Assim como o pai, ela está mais interessada não na construção dessa mitologia, mas no choque dela com os seus personagens. Qual é o efeito que esse contato com o fantástico promove em cada um deles?

Na camada mais superficial, esse efeito aparece como uma grande terapia para a resolução do trauma de infância da protagonista, Mina (Dakota Fanning). A floresta, que é o grande palco dessa obra, a obriga a reviver e a lidar com questões relacionadas à morte de sua mãe quinze anos antes, pela qual a jovem se sente culpada. Aqui a narrativa evolui de forma bastante convencional. À medida que o filme se passa, vamos descobrindo peças do quebra-cabeça da vida da protagonista e como essas peças se relacionam com cada um dos outros personagens e com os acontecimentos. A teimosia transgressora de Mina, que levou à morte da mãe, acaba por ser o fator que coloca em crise todo o status quo que estava estabelecido antes da sua chegada, e é essa crise que possibilita a resolução dos conflitos do filme. Até aqui parece tudo meio genérico.

Mas existem ideias mais interessantes sendo discutidas paralelamente. A própria dinâmica de funcionamento da floresta/poleiro (espaço onde os personagens podem passar a noite em relativa segurança sendo observados pelas criaturas misteriosas) deixa bem claro que há um comentário metalinguístico sendo tramado. A floresta se torna uma “sala escura”, onde diversas criaturas observam noite após noite os personagens vivendo atrás de uma tela/vidro espelhado. Esses personagens são conscientes de que estão sendo observados, mas estão terminantemente proibidos de retribuir esse olhar. As regras apresentadas por Madeleine (Olwen Fouéré) são claras: a porta não pode ser aberta, os personagens não podem “dar as costas” para o vidro e também não podem investigar as tocas que dão acesso ao subterrâneo, onde as tais criaturas passam o dia escondidas da luz do sol. O que essa premissa lembra?

Não bastando as claras referências, Ishana ainda acrescenta à equação um DVD antigo de um reality show cafona que fica sendo repetido à exaustão no pequeno aparelho de TV. Indicação nada sutil de que ali está sendo traçado um paralelo. As criaturas: espectadores. Os personagens: objetos da observação, fadados a existir para satisfazer o fetiche do olhar. A crise que se instaura através da desobediência de Mina: a quebra desse pacto voyeur, o filme que olha de volta para o espectador e revela a sua vulnerabilidade. E no final das contas, quem são os tais “observadores”? Criaturas que assistem aos personagens em uma busca de emular as aparências e os comportamentos dos observados. Que um dia já foram seres poderosos, que um dia já tiveram asas, mas que se encontram também aprisionados dentro da mesma dinâmica que faz dos personagens cativos. Criaturas que não possuem sequer uma forma muito definida. Que só existem a partir do que podem ver e imitar.

Dentro da perspectiva metalinguística, Ishana encontra inventivas alternativas formais que ressaltam essa dinâmica entre olhares. Ela usa e abusa dessa ideia, enquadrando o olhar de Mina e dos outros personagens através do retrovisor do carro, do espelho que separa os personagens dos “observadores”, da câmera de vídeo que a protagonista encontra em dado momento. Esses olhares, sempre direcionados a nós, espectadores, acabam por nos colocar na posição daqueles que dão título ao longa. Nós também somos as criaturas bizarras que estão do outro lado do vidro, tendo nosso fetiche satisfeito pelo que se apresenta em tela. Ao mesmo tempo, o filme nos revela que não somos assim tão diferentes daqueles personagens que procuramos observar.

A crise que a desobediência de Mina provoca acaba libertando aqueles que sobrevivem. Nesse processo de libertação, nos deparamos com mais uma referência que a diretora faz à tradição do cinema de seu pai: o plot twist. Este ressignifica a presença de uma personagem específica desde o princípio do filme. A revelação de que Madeleine é, na verdade, uma criatura infiltrada, que se diferencia das demais por poder conviver com a luz do sol, traz consigo uma outra característica do cinema de Shyamalan, que também é bastante comum em narrativas fabulares: uma lição moral. Nesse caso, a lição pode até soar infantil ou simplória, mas, assim como nas boas fábulas, a maneira como ela se apresenta carrega em si beleza. Madeleine se liberta da floresta/sala escura porque já não é mais uma mera espectadora dos personagens. Ela se torna agente, vive, toca, sente. No fim, essa capacidade lhe dá novamente asas e possibilita que ela experiencie o mundo, enquanto as demais criaturas seguem presas em busca de novos objetos para observar e imitar. Madeleine, assim como Mina, é uma desobediente. Uma lição que é também uma espécie de convite, uma vez que nos colocamos na posição das criaturas.

O filme de estreia de Ishana Night Shyamalan carrega muito do seu sobrenome consigo. Como comecei o texto dizendo, é difícil desvencilhar o que vi em “Os Observadores” de tudo o que já conheço e amo na obra de M. Night Shyamalan, para o bem e para o mal. Para o bem, porque de alguma forma esse diálogo entre pai e filha estabelece uma linha que pra mim já é familiar e positiva. Por outro lado, é difícil enxergar uma personalidade muito própria da jovem, pelo menos nesse primeiro trabalho. Além do que, ela certamente herdará, por conta disso, a antipatia de boa parte da crítica, sobretudo a americana. Resta ver onde o tempo vai levá-la. Meus votos são para que ela mantenha do pai a elegância formal e a fé nas boas histórias, mas que encontre também o que torna a sua voz única, para que não seja vista e interpretada apenas pelo nome que carrega.

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