A compra da Fox pela Disney trouxe muita ansiedade e questionamentos para os fãs de super-heróis. Uns estavam agitados com um possível encontro de equipes entre X-Men e Vingadores. Outros – como eu – já se preocupavam com a maneira com que alguns personagens seriam trabalhados na nova casa. Deadpool era o principal cerne dessa preocupação. Afinal, Wade Wilson é um anti-herói desbocado, nada convencional ou conservador e que ainda tem no sangue muito sangue! Além de seu humor ácido e nonsense, não economiza na ultraviolência estilizada – um deleite para a classificação etária. Mas essas são características essenciais na construção da natureza da personagem e da linguagem com a qual se comunica com o público. A mudança para a Disney, uma marca voltada para o público infantil, ameaçava a integridade dos valores, ou a ausência deles, que fazem Deadpool ser tão amado. Simplesmente não iríamos tolerar uma higienização politicamente correta sobre o ninja bocudo.
Nessa empreitada do mercenário tagarela financiada pelos donos do Mickey acompanhamos sua tentativa de preservar a linha temporal a qual pertence. E, para isso, ele precisa resgatar um herói do primeiro escalão: Wolverine. Na conclusão de Logan (2017), o rabugento com garras acaba se sacrificando em prol de X-23. Mas a morte do mutante, aliada à compra da Fox pela Disney – Sim, crianças, no capitalismo, um rato com dinheiro devora a raposa – acabou abalando a estrutura da dimensão de Deadpool. Dividido entre o emprego dos sonhos e aqueles com quem se importa, o bocudo sai em busca de um novo Wolverine para substituir o seu finado. Entre variantes conhecidas de quadrinhos e até de uma expectativa do público da internet, Wade adota aquele que é conhecido como o pior Wolverine de todos – mas esse pelo menos trazia consigo o clássico uniforme amarelo.
Os dois anti-heróis se mantém presos à etapa “recusado chamado” em suas respetivas jornadas. Wade Wilson deixa de lado o uniforme rubro-negro, dando preferência à polo azul e peruca acaju acobreada da skin de vendedor de carros para famílias de classe média americana (praticamente um sósia de Ted Danson em qualquer filme do fim dos anos 80). Enquanto o Logan paralelo resmunga e se embebeda em whisky barato e remorso. Obviamente a tal brotheragem que é vendida no trailer não se constrói de uma hora para outra, ou depois de uma piadoca do mercenário. Essa relação começa com muitas discussões que rendem ótimas cenas de luta entre os dois, uma delas em especial dentro de um Honda Odyssey.
É indiscutível o carisma de ambos os personagens e da química explosiva entre eles, mas o filme se sustenta muito em cima disso. O roteiro segue a estrutura narrativa da jornada do herói, contudo estacionando em algumas etapas e de forma irregular. As inserções de referências ao universo da Marvel, da vida provada e carreira dos atores e ao próprio cinema é usada como tapa buraco para uma narrativa que parece ter sido construída sobre fan services e piadas – que nos roubam risadas na maioria das vezes. O problema é que falta substância no enredo. Ele não aprofunda, por exemplo, nas falhas do novo Wolverine, nos obrigando a nos conectar a esse carcaju meramente pela nostalgia. Até mesmo as figuras antagonistas são desinteressantes. Sr. Paradox tinha tudo para ser grandioso, mas se revela medíocre e reduzido à maneirismos camp. Cassandra Nova, além de ser pouco conhecida pelos menos aventurados no universo dos super heróis, mais causa arrepios pelo incomodo visual gerado por sua maneira de invadir mentes do que por uma presença intimidadora. Até a aparição dos Deadpools de outras dimensões, apesar de divertida, soa deslocada.
Deadpool & Wolverine apesar de não inovar na sua estrutura, repetindo até mesmo o formato de suas piadas, sabe se utilizar como veículo de mea culpa para questões que ultrapassam a tela. Trazer os receios dos fãs com a Disney e escancarar as falhas em outros projetos da extinta Fox são acréscimos que fazem a franquia Deadpool um diferencial entre os “filmes de boneco”. A ruptura com a diegese fílmica rende diálogos afiados que provam que Wade Wilson é um autêntico bobo da corte que tira sarro e contorna com maestria as censura impostas por Kevin Feige e o conservadorismo do estúdio, como na cena em que aborda o uso de cocaína entre Wade e Al. O filme também ressuscita outros personagens para dar a eles um desfecho digno (Blade, X-23 e Elektra), dá vida a projetos promissores que foram desprezados (Gambit, por Channing Tatum) e satiriza a existência de personagens distintos serem interpretados pelo mesmo artista (Capitão América e Tocha Humana, por Chris Evans). Mas talvez o maior acerto, e o mais disruptivo do filme, seja trazer a pansexualidade do personagem. O filme brinca com o sex appeal de Logan e a tensão sexual entre personagens masculinos. Aliás, quase todas as representações sexuais envolvem apenas personagens masculinos – Salvo os dedos em orifícios faciais por parte da antagonista. Sem deixar de lado o destaque dado à “Like a Prayer”, de Maddonna, na trilha musical, a primeira sequência simula uma masturbação masculina e um ménage junto a dois vigilantes do tempo.
É impossível não fazer uma comparação com os dois filmes anteriores do mercenário tagarela. Principalmente quando a compra dos estúdios acabou sendo um divisor de águas que interferiu no destino de ambos os anti-heróis que protagonizam a obra. Ainda que soe mais como um amontoado de cenas pós créditos com uma eletrizante playlist de fundo, ou um esquete especial de uma hora e meia do Porta dos Fundos, o filme respeita a essência do personagem sem precisar higienizá-lo para atender os valores do estúdio. Até mesmo a classificação indicativa não se tornou um empecilho para oferecer um autêntico filme do Deadpool para seus fãs. Apesar de possuir um enredo genérico e com atropelos, é um legítimo filme do anti-herói, onde não faltam violência estilizada, humor nonsense e cenas de ação eletrizantes e bem coreografadas. Com certeza é um filme feito para atender aos fãs. Ainda que esses não saibam, ou prefiram fingir que não sabem, que merecem receber um produto melhor.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.