“Objeto se remove. Pessoa, não. Pessoa vai se quiser”
A desumanização da população periférica não é um projeto que se iniciou na última década. Tampouco é algo desse século. Ela vem de muitos anos. E, também não é característica deste ou de outro governo eleito. Mas na ditadura militar, em especial, ela havia ganhado outras ferramentas para garantir a opressão a esse grupo. A arbitrariedade e truculência eram regras durante os anos de chumbo. Além do medo em se opor ao governo, sendo acusado de ser subversivo, havia também a falta de conhecimento jurídico ou acesso àqueles que o detinham para observar que as medidas que estavam sendo tomadas eram totalmente arbitrárias. Existia apenas a certeza sobre a injustiça vivida e a revolta daqueles que encontram no espírito de corpo força para resistir.
Favela do Papa já se inicia com o depoimento de um dos moradores do Morro do Vidigal, indignado com a maneira na qual é enxergado. Ele inicia sua entrevista sublinhando a sua nacionalidade. Ao se afirmar como brasileiro, ele reivindica também o status de cidadão, apesar de conceitos básicos de cidadania lhe serem negados. Coloca em xeque os valores do trabalho e da propriedade. E questiona os motivos escusos de sua desapropriação e, acima de tudo, a falta de explicações objetivas por parte dos órgãos oficiais e seus representantes. Como “cereja do bolo”, se compara com objetos cotidianos que são descartados sem qualquer cuidado. É interessante ressaltar que esse depoimento vem em forma de gravação. Além de seu caráter instrumental, já que é um arquivo sonoro, ele possui caráter metafórico. Ao não exibir rostos, apenas um gravador antigo, despersonaliza-se a voz daquele morador, tornando-a universal. Aquela é a voz do sapateiro Valdemar Paes de Araújo, paraibano, morador há vinte anos da Favela do Vidigal, mas também é a de qualquer outro morador daquela comunidade.
Sob os depoimentos de moradores que fizeram parte do movimento de resistência, o documentário redesenha a linha do tempo dos acontecimentos com riqueza de detalhes, conseguindo colocar o espectador em um lugar de observador empático capaz de sentir a angústia daqueles que, a qualquer momento, poderiam ser removidos de suas residências para um lugar qualquer da cidade. As obras habitacionais realizadas pelo governo Faria Lima para “devolver a dignidade” àquelas pessoas se localizavam do outro lado da cidade, em Antares (Campo Grande), afastado do ciclo familiar, social e de apoio, e, até mesmo, do seu local de trabalho. Ainda era um lugar tomado pela violência e sem estrutura. As tais casas populares se revelavam cubículos com pouca circulação de ar e entrada de luz, onde mal cabiam fogão e geladeira em seus espaços destinados, na cozinha.
Além da arbitrariedade e truculência típicas de um período de ditadura, o documentário “desvenda” os interesses privados naquela localização privilegiada à beira mar. Estando os barracos na encosta da Avenida Niemeyer e a poucos metros de uma rede hoteleira, quem poderia imaginar que a “elite” teria interesse em desapropriar pessoas humildes daqueles lotes de terra? Se surpreender com o grande vilão dessa história sendo o capitalismo, a titânica máquina de moer gente, é como se surpreender com a revelação do herdeiro da mansão assombrada estar por debaixo da máscara de fantasma no final de um episódio do desenho do Scooby Doo. Mas não é sobre esse “plot twist” que o documentário se sustenta. É sobre a força daquelas pessoas. “Nas condições em que estavam, os moradores do Vidigal enfrentavam a máquina do Estado como Davi enfrentou Golias.. E, para aqueles que, dotados de miopia e “viralatismo”, acham que essa luta pelo teto é uma narrativa exclusivamente brasileira, vale relembrar O Teto (1956), um clássico do neorrealismo italiano de Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicleta).
Para além das figuras dos moradores, Favela do Papa também traz à luz um artista que, apesar de sua importância histórica, não recebeu o devido reconhecimento: Sérgio Ricardo. O músico e cineasta montou seu ateliê no Vidigal na época do projeto de desapropriação. Foi um importante aliado do grupo resistente, atraindo olhares da mídia e apoio de artistas. Nesse sentido, o documentário enaltece a figura e, também, seu último filme, Bandeira de Retalhos (2018), que narra esse mesmo acontecimento. Seu legado oferece à Favela do Papa também os depoimentos de Osmar Prado e Antonio Pitanga, dois ícones do cinema brasileiro. O registro das filmagens da obra de Ricardo foi incorporado ao documentário. Nele, é possível ver a participação da atriz Kizi Vaz e do produtor Cavi Borges. E, com isso, Favela do Papa nos surpreende com uma outra camada: a metalinguagem.
Enquanto paradigma de resistência e um espelho para as demais favelas do Rio de Janeiro, e do Brasil, O Vidigal, após sua vitória inesperada, ainda recebeu o Papa João Paulo II. Claro que sob clima de forte vigilância e desconfiança, tanto por parte das forças de segurança quanto por parte dos moradores – afinal, um atentado contra o sumo pontífice seria um prato cheio para aqueles que entoam que “favela é lugar de malandro”. Novamente o documentário acerta ao se concentrar menos na logística da recepção da figura religiosa e mais no impacto sobre os moradores da região. Reiterando a importância e o valor daquelas pessoas por meio do sermão das bem-aventuranças. A visita do Papa havia deixado para aquelas pessoas mais do que um anel, mas o sentimento de reconhecimento e esperança.
Apesar de sua construção convencional, alternando imagens de arquivo e depoimentos, Favela do Papa é uma ponte do passado com o presente. Acima de tudo um registro de injustiças e absurdos cometidos e que não devem ser esquecidos, nem reprisados. Mas seu maior valor é dar voz aqueles cujas vozes tendem a ser silenciadas ou, minimamente, abafadas. E para além de apontar a vilania dos vilões, é certeiro em mostrar, como um manifesto de resistência e esperança, a força que a união possui. O Vidigal, por sua vez, também é um epicentro de resistência cultural. Lá é a sede do Nós do Morro, ONG responsável por oferecer formação artística e técnica a jovens periféricos. Do grupo, emergiram nomes de destaque como Babu Santana, Douglas Silva, Marcelo Melo Jr. e Sheron Menezzes.
Favela do Papa foi exibido no Festival É Tudo Verdade e na Mostra Ecofalante. O documentário está em exibição nos cinemas.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.