“Me chama de Baby”
Eu lembro de quando era adolescente e o filme ganhador do Oscar era O Segredo de Brokeback Moutain. Ao chegar à locadora que frequentava – e mais tarde fui funcionário – torci o nariz. O longa que contava a história do romance proibido entre dois cowboys – símbolo da masculinidade nos Estados Unidos – me causara afastamento devido ao burburinho a respeito da cena de intimidade entre os protagonistas. A única coisa que passava na minha cabeça era que “eu não tava a fim de ver dois caras se pegando”. O preconceito, a imaturidade e a ignorância acabaram me afastando de uma obra belíssima, e não me deixando enxergar o quão disruptiva e desafiadora aos costumes era aquela história. Quem bom que o tempo passa e alguns posicionamentos deslocados são abandonados. Hoje, a cópia em Blu-ray do filme é um valioso item da minha coleção.
Baby é outra dessas obras que desafiam o gosto dos espectadores preconceituosos. Ela alcança diferentes pontos a respeito de marginalização e acolhimento em uma narrativa queer. A saída de um centro de detenção juvenil como ponto de partida do enredo já posiciona o protagonista à margem da sociedade. Suas desventuras vão esbarrar com outras figuras marginalizadas, além de sua imersão no submundo da prostituição. Durante sua jornada, ele vai explorar novas experiências, frustrações e afetos.
A saída de Wellington (João Pedro Mariano) da casa de detenção, ainda que marcada por uma fanfarra de banda marcial, não implica em celebração. Pois toda sua movimentação na cena se faz através de uma trajetória de retorno, rumando para a esquerda do quadro. O desencontro com a família, em especial com a figura materna, supõe um abandono. Até o abrigo entre velhos conhecidos, um grupo de artistas de rua LGBT, é marcado por acusações relacionadas à sua detenção. É em um esquema de golpe em um cinema pornô que conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um garoto de programa que o acolhe e o apresenta a esse métier.
O que começa como uma parceria, e até uma relação de mestre e aprendiz, vai ganhando novos e sutis contornos. Apesar do sexo entre Ronaldo e Wellington fazer parte de uma encenação para agradar a clientela, a atração sexual se faz presente desde a primeira interação. Mas a evolução do afeto que se constrói principalmente por parte de Ronaldo vai se tornando cada vez mais nítida, tanto pelo cuidado quanto pelo ciúme que manifesta por seu protegido. Em uma das discussões, Ronaldo o repreende: “Deixa de ser baby”, nome que Wellington passa a abraçar.
A colaboração entre o casal de garotos de programa também se estende à venda de drogas, trazendo uma nova camada de alienação social à ambos. Apesar de prestarem serviços às figuras de elevado poder aquisitivo como traficantes e empresários, os dois residem em um casebre em uma favela da grande São Paulo. As interações nesse submundo têm o corpo de ambos como moeda. Em nenhum momento o filme envereda pela vitimização ou construir algum juízo de valor em cima da dupla a respeito dessa temática. Em relação à Wellington, quando na pele de baby, ele utiliza sua fragilidade como ferramenta de sedução e artifício para ascender. Sua subsistência, e até sobrevivência, vem da busca do suporte de um benfeitor ou até um possível sugar daddy.
Mas entre as discussões trazidas, outro acerto é o aceno a respeito de configuração familiar. Na busca da sua família de origem, é no seio familiar de Ronaldo que Wellington é acolhido. Longe do formato defendido pela família tradicional brasileira, são aquelas pessoas que oferecem suporte ao rapaz. Em seu aniversário, são eles que oferecem a festa. Mas o maior presente está em acompanhá-lo ao reencontro com sua mãe. Esse momento é marcado por ternura e saudade. Fica claro que a figura paterna está ligada ao afastamento de Wellington e seus parentes. Felizmente o filme se reserva à presença do pai apenas fora de campo. Os conflitos relacionados à sexualidade de um filho são tema para outro filme, da mesma maneira com que o bullying enfrentado no âmbito escolar também se limitou a ser apenas citado.
Baby não tem pudores em escancarar na tela as vivências que seu protagonista experimenta após sua saída da Febem. Se seu lugar é a margem, é nesses não -lugares onde corpos são mercadorias e drogas transitam sem censura que Wellington encontra uma alternativa para sua própria sobrevivência. Afinal, são os inferninhos de São Paulo e os apartamentos de luxo que acabam se tornado os escritórios temporários daqueles garotos e garotas de programa, travestis e pessoas trans trabalhadores do sexo.
Se a nudez masculina não é ocultada, tão pouco seria o sexo entre homens. Mas, apesar dos diversos genitais masculinos, é apenas pelos seus sentimentos que Ronaldo se desnuda. Apesar do arquétipo de homem rústico, é o que mais expõe sua vulnerabilidade. Não à toa, o faroeste nos lembra que Os Brutos Também Amam. E se envergonham da possibilidade de ter feito mal à pessoa amada. É próximo dos créditos finais que o personagem nos surpreende mais uma vez. Em forma de uma lembrança, avistamos Ronaldo aprendendo Vogue em uma laje, algo inusitado para alguém que no início da história ensinara boxe ao seu protegido.
Baby foi exibido na 26ª edição do Festival Internacional do Rio de Janeiro, onde compartilhou o prêmio Redentor de Melhor Filme com Malu.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.