Eu nunca havia assistido a um filme panamenho. A maioria dos fatos a respeito desse pequeno país na América Central sempre me escapou. Mais ainda sua filmografia, que descobri também ser recente. Nessa primeira experiência, me deparo com um filme indígena que relata um momento histórico. Além de me aproximar da história do país, ainda tenho a oportunidade de conhecer o seu povo originário e sua cultura. Apesar desse desconhecimento anterior, observo que, em ambos os territórios, o povo originário sofreu e sofre perseguição. Mas, se a luta permanece, também deve permanecer a manutenção da memória, principalmente da memória a respeito da vitória pela sobrevivência, pelo direito de permanecer e de existir à sua maneira.
Bila Burba é um documentário sobre o povo Gunadule e sobre a revolta bem-sucedida contra o governo repressivo do recém-emancipado Panamá, em 1925. Os “Dules” ocupam a região de Guna Yala, um arquipélago com mais de 300 ilhas, desde tempos remotos. A história desse povo originário acaba se cruzando com a história desse jovem país. O longa também se permite fazer um recorte sobre o nascimento do Panamá, após sua separação da Colômbia. Até então, os indígenas não tinham o domínio sobre suas terras ameaçado pelo governo colombiano.
Ao longo do documentário, alguns elementos me chamaram a atenção. Havia uma presença forte das cores vermelha e laranja, tanto na fotografia quanto em bandeiras, vestimentas e caracterização do povo Dule. Um símbolo que me chamou a atenção foi a suástica, sempre presente nas roupas, gravuras e bandeiras. Como não indígena, as cores e o símbolo têm outro significado no meu repertório. A suástica, por exemplo, tem origem no hinduísmo e, invertida, foi apropriada pelo nazismo – o que acabou por ressignificá-la com uma conotação totalmente negativa. Contudo, tive a oportunidade de conversar com o diretor para me atualizar sobre a semiótica que envolve esses elementos. Quanto às cores, o vermelho remetia ao sangue e à força. O laranja, ao indivíduo de ouro que viria a se tornar. A suástica é um símbolo de proteção que remete também aos pontos cardeais, sendo uma reconstrução de uma planta com importante significado cultural.
O documentário, a princípio, se constrói sobre uma estrutura bastante convencional. A história é recontada através de depoimentos, fotografias antigas e gravuras que reconstroem o ocorrido. Os principais entrevistados são dois idosos que são remanescentes daquele tempo e descendem dos líderes da revolução. A oralidade como recurso de acesso à ancestralidade é algo comum entre autóctones. A fala, mais especificamente o contar histórias, é o principal veículo de transmissão de conhecimento e memória entre gerações. A dramaticidade é imposta através do tom e das expressões faciais, além de ser possível se emocionar ao presenciar a sensibilidade com que narram a luta de seu povo.
Em uma nova camada de reconstrução da memória, o diretor Duiren Wagua, que também pertence ao povo Dule, recorre ao teatro para trazer mais dinâmica à sua obra. Nada mais justo, afinal, o cinema é uma arte de imagens em movimento. Além disso, a companhia de teatro responsável por reencenar a história também pertence à tribo, o que faz deste um movimento educacional, já que envolve as novas gerações no processo de encenação. Mas a forma com que o diretor registra essa encenação nos chacoalha enquanto espectadores. Com a câmera na mão, a carência de recursos é superada, e toda a potência da imagem é atingida. Somos atravessados por toda aquela dor e violência que decorre na tela, pois conseguimos nos transportar para aquele espaço-tempo do evento.
Se Bila Burba é educativo para o seu próprio povo, é também para o mundo todo. O filme permite-se incorporar a memória de forma vívida e corporal. À sua maneira, me lembrou A Flor do Buriti (Crítica por Alvaro Goulart; Crítica por Márcio Sallem), pois também abraça a encenação, mas não de forma coletiva. O longa luso-brasileiro traz consigo um caráter híbrido por filmar lembranças oníricas. Outra ponte que existe entre ambos os filmes é o fato de colocarem para os demais territórios que o povo retratado em tela ainda está sob ameaça e ainda vive a luta por seus direitos.
Bila Burba foi assistido na Mostra Território do 18º Festival Internacional de Cinema – Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.