Viajar por estradas é uma experiência curiosamente dúbia para mim. Enquanto me apaixono pelas paisagens que correm em sentido contrário nas janelas, ou me embalo pelo chacoalhar do transporte, que me nina, até um breve e confortante cochilo, ou posso ser invadido por uma sensação inoportuna de “morte súbita”. O enjoo toma conta do meu corpo, sou tomado por uma sudorese gélida, e minha pressão arterial despenca a tal ponto que me coloca à beira de um desmaio. Isso ocorre devido a um transtorno vestibular chamado cinetose, gerado por uma incompatibilidade de percepção de movimento entre meus olhos e ouvidos. Ou seja, meus olhos entendem que estou em movimento, mas meus ouvidos não. E cada um envia mensagens distintas ao meu cérebro.
Em Carropasajero, acompanhamos uma velha caminhonete transportando seus passageiros pelo deserto de La Guajira, na Colômbia. Os viajantes, membros da tribo Wayuú, retornam ao sítio ancestral de onde foram expulsos por forças paramilitares. Memórias de familiares já finados são ressuscitadas em paralelo com crianças que brincam na paisagem árida. Vivências e viver compartilham o mesmo quadro, em um recorte onírico que comprime passado, presente e futuro. Apesar dos múltiplos personagens, o filme se concentra na figura de uma anciã, cujos depoimentos reconstroem sonhos e recordações. Ela é apresentada conversando com o espectador, ou a câmera, ou simplesmente conversando com o nada. Mas sempre de forma lírica, porém repetitiva, evocando os nomes dos personagens de sua história. A elipse empregada é a principal ferramenta para a desconexão da realidade daqueles que vagam pelo deserto e dos que observam do outro lado da tela.
O ritmo dessa construção híbrida evoca o caráter transcendental que os diretores Juan Pablo Polanco Carranza e Cézar Alejandro Jaimes buscam incorporar à obra. Colocando aquelas pessoas como figuras fantasmagóricas, seja dentro do ônibus ou sob o sol escaldante, isso reforça o eterno purgatório em que aquelas almas se encontram. Apesar do “carro passageiro” sugerir transitoriedade, a sensação de estagnação se perpetua ao longo de toda a narrativa. As tomadas do longa se esticam de tal forma que aqueles corpos parecem estar paralisados. Temos a ilusão de estarmos contemplando o mesmo quadro por segundos, ou minutos a fio. Ao invés dos vinte e quatro por segundo que a gramática do cinema contemporâneo sugere.
A fotografia é o principal atrativo de Carropasajero. Existe um profundo domínio técnico que consegue extrair o máximo de beleza daquele cenário minimalista. Seja sobre a luz estourada que torna amarelo alaranjado tudo o que toca, ou pela escuridão que uniformiza silhuetas. Existe uma pretensão poética por trás do emprego dessa fotografia. Os planos-detalhes na mão e face enrugadas e castigadas pelo tempo invocam os dramas vivenciados pela personagem. Filmar a areia se esvaindo daquelas mãos é um aceno à metáfora da passagem do tempo e à vida erodida daquele povo. O chiaroescuro também coloca aquelas pessoas em um não lugar, onde parecem experimentar vida e morte simultaneamente.
Apesar da beleza estética de sua fotografia, o resultado do trabalho de Juan Pablo Polanco Carranza e Cézar Alejandro Jaimes tem muito pouco a nos oferecer. A obra aparenta ser estática ao longo de boa parte de seu tempo, sob uma narração que se repete em demasia. Os pouco mais de cem minutos do longa proporcionam a ilusão de durar os sete anos que demorou para que o longa fosse produzido. Até para um apreciador do slow cinema, me desconectei diversas vezes de Carropasajero. Pois, o deslumbrar da beleza da fotografia não se sustenta ao longo de sua permanência na tela. Reforçada por frases fragmentadas e nomes repetidos, experimentamos um transe hipnótico que mais nos afasta do que nos aproxima à história daqueles personagens. Se o objetivo era uma experiência transcendental que nos conectasse aos Wayúu, o resultado foi uma experiência de “quase morte” em uma viagem de ônibus marcada apenas pela cinetose. Afinal, meus olhos e ouvidos também estavam enviando informações distintas ao meu cérebro a respeito de estar ou não presenciando movimento.
Carropasajero foi exibido na Mostra Território do 18º Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte – Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.