“Tem força o suficiente?”
Eu tinha por volta de 9 anos quando as reportagens sobre o Maníaco do Parque invadiam os comerciais de toda a programação, dos desenhos às novelas. Foi marcante a captura de um dos mais famosos assassinos em série do Brasil. As histórias de crimes reais (true crimes) acabaram criando um subgênero amplamente consumido. Existe uma curiosidade mórbida sobre o assunto, seja para tentar entender o funcionamento dessas mentes doentias, seja pelo próprio fetiche com a violência. Confesso que me enquadro entre os consumidores. Já li livros como os da Ilana Casoy e assisti a diversas produções com essa temática, tanto ficções quanto documentários.
Recentemente, levantou-se a discussão sobre o quão nocivas podem ser essas produções, no sentido de fazerem as vítimas sobreviventes e suas famílias reviverem esses eventos traumáticos ou, até mesmo, propiciarem o culto a esses personagens – elevando-os ao status de celebridades e, em alguns casos, inspirando novos crimes (como o massacre de Columbine e Charles Manson, por exemplo). Entre as polêmicas mais recentes estão as produções da Netflix Dahmer – Um Canibal Americano e Ted Bundy – A Irresistível Face do Mal. Em ambos os casos, a empresa foi acusada de glamourizar esses criminosos, sendo obrigada a se manifestar nas redes sociais.
Maníaco do Parque também é uma produção para streaming, desta vez pela Amazon Prime. Maurício Eça, que já havia dirigido os três filmes baseados no caso Von Richthofen para a plataforma, ficou responsável pela direção. O foco da narrativa ficcional está na cobertura da imprensa e sua tendência à espetacularização dos crimes como estratégia para alavancar as vendas de jornais. A história é contada pela perspectiva de Elena (Giovana Grigio), uma repórter em ascensão de um jornal impresso. Paralelamente, o filme acompanha os passos de um dos maiores assassinos que já protagonizaram cadernos policiais e telejornais no Brasil.
Apesar de ser uma crítica aberta ao sensacionalismo e ao jornalismo “espreme que sai sangue”, o filme de Eça começa explorando o imaginário coletivo e estabelecendo um pacto de sangue com o espectador. Inicia-se nos convidando a participar da perseguição de um patinador ao som de “What a Wonderful World”, tocado pelos Ramones. Enquanto dita o ritmo de sua narrativa, o diretor também nos situa no tempo e espaço, apresentando uma São Paulo durante a Copa de 98. No entanto, Eça logo cai na armadilha que pretende criticar. A escolha de seguir o assassino em uma cena estilizada, marcada por um rastro digital de sangue ao estilo Hitchcock, revela uma abordagem apelativa, que se aproxima da espetacularização da violência que ele próprio pretende condenar. Assim, o filme já começa a caminhar sobre uma linha tênue entre a crítica ao sensacionalismo e a reprodução das estratégias que pretende questionar.
Na tentativa de reparação histórica com as vítimas, o diretor insere em sua trama a jornalista Elena como a responsável pela investigação e prisão do criminoso. Em segundo plano, Eça aborda a luta pela sobrevivência da jornalista no cenário hostil da redação, onde o topo da cadeia alimentar é formado por homens mais velhos de carreiras estagnadas. Subvertendo o sistema a seu favor, ela se depara com os crimes do Maníaco do Parque – alcunha que ela mesma cria. Como consequência, entra em uma queda de braço com Zico (Bruno Garcia), um jornalista que vive de glórias passadas. Na busca por ilustrar o ambiente como devorador de mulheres, o roteiro acaba pesando a mão ao sublinhar suas denúncias ao patriarcado, retratando quase todos os personagens masculinos como figuras toscas, sexistas, frustradas, agressivas, incompetentes e que, em algum momento, cometem algum tipo de violência contra uma mulher. Entre aqueles que orbitam Elena, apenas um colega fotógrafo escapa desse perfil – por não pertencer àquele “Olimpo”.
O didatismo do filme se torna ainda mais evidente por meio de Martha (Mel Lisboa), psicóloga e irmã de Elena. A personagem serve apenas como instrumento do roteiro, limitando-se a dar breves explicações sobre psicopatia que parecem saídas de um livro da coleção “For Dummies”. Um enorme desperdício do talento da atriz. Outro desserviço é a associação da psicopatia – um transtorno de personalidade – com o cometimento de crimes brutais. Nem todo psicopata é assassino, assim como nem todo assassino é psicopata. Na verdade, muitos psicopatas têm bom desempenho social, sendo focados em suas carreiras. Apenas uma pequena parcela se torna criminosa. Existe, na realidade, um conjunto de fatores que propiciam o desenvolvimento de uma mente perturbada o suficiente para cometer tais crimes. Em nenhum momento o filme se aprofunda nas causas desse comportamento – apesar de existirem elementos na biografia do criminoso – talvez por receio de parecer justificar seus atos.
Ainda que o diretor acredite estar sendo “respeitoso” com as vítimas e que as cenas de violência se justifiquem na narrativa, elas provocam mal-estar. Devemos lembrar que não se trata de uma história fictícia, apesar dos elementos ficcionais presentes. Mesmo que o estupro seja suprimido, a escolha de manter o ataque dentro do quadro é uma forma de reprodução da barbárie, agravada pela exibição dos cadáveres amarrados de joelhos, como foram encontrados pela polícia. Considerando que o criminoso violentava mulheres, me questiono se essa seria a abordagem de uma diretora mulher ao trazer essa história de volta às telas. Questiono essa decisão principalmente por conta do discurso de “aliado das mulheres” que o filme tenta sustentar. Nesse quesito, o filme também falha ao dar ao assassino quase o mesmo tempo de tela que à protagonista. Apesar de tentar explorar o ponto de vista feminino através da jornalista, o filme se excede na dedicação em acompanhar os passos de Francisco.
Sou grande fã do trabalho de L.G. Bayão, especialmente pela maneira como conduz cinebiografias. Seja contando a história de indivíduos (Heleno: O Príncipe Maldito, Minha Fama de Mau, Irmã Dulce), de grupos (4×100: Correndo por um Sonho) ou de uma rádio (Aumenta que é Rock N’ Roll), Bayão acerta nas elipses e no ritmo das narrativas. Contudo, no roteiro de Maníaco do Parque, o desenvolvimento da investigação é tão suprimido que todas as dificuldades enfrentadas por Elena são facilmente superadas por uma consulta com sua irmã ou pela aparição oportuna de um convite para karaokê (seu colega surge em cena como um deus ex machina). Todas as resoluções soam incrivelmente convenientes. Até o dilema ético vivido pela jornalista carece de amadurecimento. Chega a ser cafona a cena em que ela sai triunfante da redação, agigantada pelo contra-plongée. Além disso, a construção da personagem não dá espaço para que Giovana Grigio explore outras facetas além da tensão de uma mulher sob estresse.
Se, por um lado, Elena é unidimensional, o antagonista ganha espaço para que Silvero Pereira mostre toda a sua potência. O trabalho do ator é o ponto alto do filme. Apesar de interpretar o mesmo personagem, Silvero nos apresenta três facetas de Francisco: o motoboy dedicado, o patinador audaz e o maníaco assassino. Ainda que Chico Estrela, o patinador, tenha poucas falas, é possível perceber sua busca por emoção e liberdade de forma vívida. O arquétipo aventureiro e sonhador é sentido em seu depoimento na fita VHS do grupo de patinadores do Ibirapuera. Mas é na camuflagem de Francisco, o motoboy, que o ator brilha. A maneira como simula ser um animal indefeso enquanto esconde a besta-fera é impressionante. Os momentos em que o personagem ameaça perder o controle demonstram a habilidade do ator em interpretar alguém que transita entre dois mundos.
Além da controvérsia de trazer para as telas a história desses crimes, que ainda estão muito presentes na memória dos brasileiros, a condução dessa produção levanta diversos pontos questionáveis, especialmente considerando sua proposta inicial. Sua pretensão de desenvolver a investigação no âmbito jornalístico se perde em uma cartilha sobre a toxicidade dos ambientes masculinos. É impossível não comparar Maníaco do Parque a Zodíaco, de David Fincher. A obra de Fincher também explora a disputa de egos entre os personagens de Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo e Robert Downey Jr., mas explora com mais profundidade a obsessão pela investigação e o desgaste emocional dos envolvidos. A única cena que aborda o desespero da protagonista parece um pastiche de The Post. Além disso, é cansativo perceber as diversas superficialidades com que o roteiro conduz a trama, recorrendo a soluções convenientes ou diálogos expositivos. Apesar de situar o espectador na São Paulo dos anos 90 e fazer um aceno sobre como as mortes impactaram a cidade, o filme não aprofunda a opinião pública sobre o caso. O longa questiona a própria existência nas várias vezes em que frisa o narcisismo de Francisco em sua busca incessante por fama. Ao final, ressalta que o Maníaco do Parque terá sua pena cumprida em 2028. Quando sair, se deparará com um filme a seu respeito. Por fim, deixo para o leitor a conclusão sobre trazer um crime tão recente de volta às telas e se um diretor homem é a escolha mais apropriada para contar histórias em que mulheres são violentadas.
Maníaco do Parque foi assistido na Gala de Encerramento da 26ª edição do Festival do Rio. O filme está disponível na Amazon Prime Video.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.