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Os Enforcados

4.5/5

Os Enforcados

2024

123 minutos

4.5/5

Diretor: Fernando Coimbra

“Vida limpa não existe. Vida limpa é ilusão”

Outro dia estava conversando com o Vitor Veloso, do Vertentes de Cinema, e compartilhando suburbanidades. Ele, cria da Ilha do Governador; eu, cria do Grande Méier. Entre várias histórias, esbarramos na questão de que todo suburbano tem laços familiares com alguém que é da polícia (ou é afilhado, ou um vizinho), do jogo do bicho (ou pelo menos tem aquele tio que faz sempre uma fézinha), ou dono de bar. O subúrbio respira isso. É com tentar fugir do samba. Simplesmente impossível.

Os Enforcados traz uma trama híbrida de thriller e comédia inspirada em Macbeth e Hamlet, de Shakespeare, e ambientada no submundo da máfia do jogo do bicho e caça-níqueis no subúrbio carioca. É curioso como o diretor Fernando Coimbra, paulista de Ribeirão Preto, consegue captar tão bem as idiossincrasias desse microcosmos tão peculiar que é o subúrbio. Seu primeiro longa, O Lobo Atrás da Porta, trata de um crime que assombrou a região nos anos 60. Se antes sua narrativa se passava no eixo Penha-Oswaldo Cruz-Malermes, agora o diretor revisita a cidade, com uma mansão na Zona Sul que transpira a Grande Pavuna.

Reunião com a máfia do jogo do bicho. Os personagens de Ernani Moraes e Ricardo Bittencourt que remetem a Ailton Guimarães e Castor de Andrade. Imagem: Divulgação

O foco da narrativa está em Valério (Irandhir Santos) e sua esposa, Regina (Leandra Leal) que se vêem próximos à falência durante a reforma de sua mansão. O casal possui uma dinâmica peculiar. Valério é um sujeito passivo, até omisso, que demostra insatisfação em fazer parte dos negócios escusos da família. Regina tem um perfil dominante e incisivo. Ainda assim, o fetiche sexual de ambos envolve a encenação de estupro, em que Valério faz o papel de invasor e inverte os papeis de submissão com que operam enquanto casal no dia a dia. Mas é na maneira com que lidam com adversidades que vemos essa latência entre as pulsões de vida e morte.

Fernando Coimbra desenvolveu a narrativa colocando os protagonistas como dois camundongos em uma caixa, onde suas ações os tornam cada vez mais prisioneiros daquele mundo do crime. No caso, a grande caixa-prisão é a mansão. A presença do corpo emparedado, a morte infiltrando pelas paredes, a dinâmica entre céu e inferno que existe entre os andares da casa e o sangue que passa a decorar as paredes são alguns dos elementos que ilustram essa metáfora. Se trouxermos o som da obra, as batidas e o som de passos pesados vão se tornando mais intensos conforme os protagonistas se veem encurralados. É como se aquele barulho de fundo marcasse o batimento cardíaco daqueles dois. Também é o som que costura a cena inicial à final. Ambas tomadas por sons fora de campo.

Uma casa, uma cena de crime, uma prisão. Imagem: Divulgação

A trama escalona, se convertendo de uma comédia de humor ácido para um thriller. Conforme as ações vão se tornando mais drásticas, vemos as inserções cômicas se diluírem. Tanto Valério quanto Regina começam a revelar suas faces mais sombrias – e um deles ainda possui um ferimento em um dos lados. E o vermelho sangue vai se tornando mais aparente ainda que de forma discreta: Regina, por exemplo, deixa os tons frios de lado para adotar o vermelho em seu figurino. É essa também a cor que decora a entrada do cômodo que vai receber a maior quantidade de corpos. Como se, o vermelho na entrada não impedisse o acesso do anjo da morte. Mas não é fácil fazer juízo de valor sobre as ações desses personagens. Apesar do extremismo ao qual recorrem, eles não deixam de ser animais que reagem ao medo que sentem.

Talvez seja em cima desse medo e da expectativa de alívios cômicos que a obra de Coimbra tenha perdido a força do discurso. Em uma cena em especial, a personagem de Leandra Leal se desespera e sai correndo gritando, apesar de estar sendo acudida por seus aliados. Nesse momento, a reação da plateia foi o riso. E me parece um tanto insensível rir daquela cena em que claramente é um momento de desespero da personagem, tomada pelo medo da morte. Se esse momento não é para colocar a ethos do espectador em cheque, ele apresenta um sintoma de equívoco da montagem.

Os Enforcados brinca de subverter diversos símbolos. Mais que isso. Fernando Coimbra procura oferecer ao espectador um novo significado sobre esses símbolos. O título da obra por sí só já remete à carta de tarô e ao fetiche de submissão do casal que, inclusive, inspira a primeira morte. A cena inicial com a destruição de uma estátua do Rei Momo é bastante significativa. Até mesmo a maçã, fruta a qual Valério recorre, nos faz questionar se é um aceno ao fruto proibido e à desgraça de Adão pelas influências de Eva. Dessa maneira, o diretor consegue nos prender à trama através de nosso imaginário, sempre nos fazendo querer antecipar o próximo passo do casal, ou as consequências de seus atos.

Apesar de não acompanhar o realismo que adotara em seu Lobo Atrás da Porta, as atuações são tão potentes quanto. A sinergia entre o diretor e Leandra se repete nesse novo encontro. Assim como Leandra Leal, Irandhir está impecável. Mas o funcionamento do filme dependeu diretamente da afinação que existe entre todo elenco. Destaque a participação de Stepan Nercessian e de Irene Ravache, veteranos, que imprimem a dose certa de mau-caratismo e carisma em seus personagens.

Os Enforcados foi assistido durante a 26ª Edição do Festival do Rio.

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