Como ansioso diagnosticado, faço um êxodo urbano em direção à Cachoeiras de Macacu para me desconectar dos excessivos estímulos que me atravessam por todas as direções em meu cotidiano metropolitano. Onde deixo de lado o barulho de trânsito, violência urbana, som alto e obras pelo canto do vento, do rio e do passaredo. É lá onde o meu dia passa a ser entendido por 24 horas e não mais 24 minutos. Nesse lugar, o imediatismo não faz mais sentido, e parar para apreciar o cheiro e o barulho da chuva tocando a vegetação é prioridade. Naquela casa quase centenária, que a memória me remete a café na xícara de barro, que me renovo. Lá é meu refúgio, meu templo, meu éden.
Em Pasárgada, acompanhamos Irene (Dira Paes) uma ornitóloga solitária em uma pesquisa de reconhecimento de pássaros na região de Arraial do Sana, distrito de Macaé (que fica a menos de 2 horas de Cachoeiras de Macacu). A personagem de Dira faz a manutenção de seus vínculos, familiares e de trabalho, através da tela de deu computador. É através de suas reuniões virtuais com Peter (Peter Ketnath) que entendemos que Irene que seu trabalho está relacionado ao tráfico de espécies nativas. E, para concluir seu ofício, ela recorre ao mateiro regional Ciça (Ilson Gonçalves), que é logo substituído por Manuel (Humberto Carrão).
As tentativas de localizar os espécimes encomendadas são frustradas por infortúnios do destino. E, enquanto envereda pela mata, Irene realiza uma jornada para dentro de si. Inspirada pela natureza, a ornitóloga se reconecta à sua formação e passa a questionar seu ofício ilegal e a seu “chefe”. Nesse processo de redescoberta do seu antigo eu, ela desenvolve interesse pelo novo materializado no personagem de Carrão. De uma figura que transitava opaca por entre as paredes da casa, Irene se converte em alguém solar que se permite sentir o fluxo da água de um rio enquanto rememora o curso que a vida seguiu, ou até mesmo o calor do fogo que estala na lareira enquanto fantasia com Manuel.
O conflito do filme extrapola os corpos. Ele também é ideológico. Para além do antagonismo óbvio com a figura do traficante estrangeiro, Pasárgada também oferece uma outra rivalidade que existe, ainda que sutilmente, entre os personagens de Ciça e Irene. Existe uma aspereza no trato entre eles. Ciça corrige reiteradamente a respeito de como deseja ser chamado, além de sua remuneração. Por trás dessa dinâmica, existem diversas oposições simbólicas: o campo e a cidade; o artesanato e a produção em massa; o ancestral e o moderno; permanência e transitoriedade; nativo e forasteiro; explore e exploit.
E por falar em explorar e tirar vantagem, o filme de estréia da atriz como diretora consegue explorar a sensorialidade. A direção da atriz nos permite compartilhar daquelas mesmas sensações que sua personagem experimenta. O aproximar do fogo e da água, desde o se deleitar nos rios ou próxima a lareira até o preparar de um chá nos transfere as sensações táteis, seja pela mise-en-scène ou pela cinestesia promovida pelo som. A edição e mixagem de som de sua obra são elementos de destaque que fazem uma ponte sensorial também entre o espectador e a natureza. Eu mesmo me vi fechando os olhos em alguns momentos e me teletransportando não para Arraial do Sana, mas para Cachoeiras de Macacu.
Se o som do filme de Dira é um ponto alto, em contraste está a fotografia que não consegue transpor para a tela a riqueza de tons de verde presentes na mata atlântica. Apesar da riqueza da fauna presentes dentro e fora de quadro, a flora se apresenta uniforme e tímida. Em seu filme de estréia como diretora, Dira Paes demonstra seu olhar apurado no exercício da função. O calcanhar de Aquiles de sua obra está no texto. O roteiro se revela erodido, trazendo fatos e vínculos superficiais sobre a protagonista. Não conseguimos entender os reais motivos que a levaram abandonar o ímpeto ambientalista intrínseco à ornitologia para servir ao tráfico daquele grupo de animais que deveria nutrir amor. Sua transformação soa abrupta, assim como seu interesse repentino no jovem mateiro. Apesar de não precisar de explicação qualquer interesse sexual, no que diz respeito ao seu despertar de consciência não conseguimos ser convencidos.
Pasárgada foi exibido na Mostra Vertentes do 18º Festival Internacional de Cinema de Belo Horizonte – Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.