por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
Se o cinema é mágica, musicais o são em seu estado de pureza. A suspensão do tempo cronológico permite que os personagens se insiram no tempo do sonho, num estado de sonambulismo, onde não importa o entorno, mas sim a experiência transcendental. Em Centro Ilusão, Pedro Diógenes procura respeitar essa concepção singular de tempo com rigor. Sua beleza maior é dar espaço para que as os números aconteçam sem pressa, em uma lógica temporal própria, permitindo que os artistas se entreguem em suas performances de modo quase espiritual. O despertar, no entanto, é comumente cruel. Aqui, a perversidade acontece quando a realidade se impõe e revela o descrédito e a precariedade das condições de trabalho daqueles que encontram na música o seu ofício.
Centro Ilusão se concentra em dois personagens que se encontram em uma audiência para um projeto musical. Tuca (Fernando Catatau) é um músico experiente, extremamente talentoso, com discos gravados e algum reconhecimento, mas que sofre com o implacável mercado de trabalho. Com dificuldades financeiras, se mostra visivelmente cansado com a falta de valorização e oportunidades. Por seu turno, Kaio (Brunu Kunk) é um jovem músico esperançoso, que não se importa em passar o chapéu para ganhar alguns trocados, e acredita que conseguirá sobreviver de sua arte. Cada um deles representa o ponto de partida e de chegada da carreira de grande parte dos artistas musicais brasileiros. A descrença de um lado e a esperança do outro, essas figuras vão se complementar, e a admiração do mais novo pelo mais experiente vai colocá-los em uma jornada vagante pelo centro da cidade de Fortaleza.
A música é, para Tuca e Kaio, sobrevivência e alimento em dose dupla. Dependem da arte para a vida física, pois instrumento de trabalho que provê, e para a vida espiritual, uma vez que anseio da alma. Possibilitar que as performances aconteçam na íntegra, com apresentação de canções e performances em planos longos, não só dá aos artistas a chance de entrega plena ao transe, como é o que melhor representa essa necessidade vital na obra de Diógenes.
O modo de vida capitalista a que estamos aprisionados em nossas ações e pensamentos impede que enxerguemos a arte como um trabalho digno de proteção, como qualquer outro, o que faz empurrar profissionais do ramo para a informalidade e precarização, como se mostra o caso de Tuca e Kaio. Existe um elemento particular, entretanto, no ofício do artista, que torna inimaginável a possibilidade de encaixe em outras profissões: arte não se faz sem inspiração e a inspiração não se faz sem um empenho de alma. Centro Ilusão é agridoce ao expor, afetuosamente, essa dualidade entre fazer o que se ama e fazer o que está se pode, escolhas determinadas pelo capital.
O vagar dos personagens pelo centro da cidade é muito simbólico em consideração ao caráter decadente desses espaços. Uma realidade brasileira já trazida por Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, os centros das cidades, que antes guardavam o ouro comercial, são alvo de abandono pelo poder público, tal qual os trabalhadores que ali operam. Centro Ilusão, porém, muito embora carregue uma certa melancolia, dá vida a esses lugares semi-mortos, vibrando cores, principalmente, por onde passam os personagens. O otimismo de Kaio vai preencher não só as lacunas de Tuca, cujo figurino vai se preenchendo de cor no decorrer do longa, mas também dar luz ao que está ao seu redor. O diretor usa o movimento do centro e filma em meio aos passantes, se integrando às ruas e exaltando a vida das pessoas com quem interage.
Muito embora caminhe de forma previsível, em que pesem todas as problemáticas sociais que ele amargamente expõe, Centro Ilusão guarda uma bela inocência e se mantém com um delicioso otimismo. Cativante tal qual seus personagens, é, certamente, um rejuvenescedor de entusiasmo em meio ao caos urbano que só faz desvalorizar seres humanos.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.