O Filme mais efervescente, em anos, do cinema nacional no que diz respeito a repercussão em todo o globo. Não que Cidade de Deus, Tropa de Elite, Que Horas Ela Volta? e Bacural não tenham atraído olhares estrangeiros ao nosso cinema, mas toda a campanha de divulgação, o momento histórico em que o filme se passa e o atual contexto que o mundo se encontra, além de, claro, a potência das atuações que renderam prêmios e indicações, acabou contribuindo para toda essa visibilidade de Ainda Estou Aqui. Para nós brasileiros, ainda traz um sentimento revanchista herdado da frustração em não terem premiado Fernanda Montenegro, por Central do Brasil – um Oscar bastante controverso. Eu precisei assisti-lo duas vezes para ter certeza ter absorvido tudo que o filme tinha a oferecer para, então, me debruçar sobre as teclas do computador.
Ainda Estou Aqui é baseado no livro de mesmo nome do escritor Marcelo Rubens Paiva (Feliz Ano Velho). É uma história biográfica de sua família, que se concentra no período em que seu pai, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) foi levado de sua casa para dar esclarecimentos e nunca mais voltou. Acompanhamos o cotidiano de uma família de classe média-alta no Rio de Janeiro no início dos anos 70. A fotografia solar, feita com a câmera na mão, nos transporta da sala de cinema para aquela sala de estar onde amigos e familiares esbanjam alegria e leveza. Rodas de conversa, dança, bebidas, fotografias, totó, crianças correndo e risadas compõem aquele cenário. Parecia um típico filme de sessão da tarde, em que a chegada de um cachorro poderia ser a força motriz daquela história que deveria funcionar como um abraço em uma tarde chuvosa e entediante… Até que a morte decide tocar a campainha daquele lar.
Antes mesmo do ponto de não-retorno do roteiro e do patriarca, Salles já nos apontava com sutilezas a presença panóptica da ditadura no cotidiano da família Paiva. Apesar da batida policial no túnel vivida por Vera (Valentina Herszage) e seus amigos, podemos sentir a opressão dos militares em diferentes formatos. A observação de Eunice (Fernanda Torres) da passagem de um caminhão da Polícia do Exército na orla da praia é um dos avisos do mal à espreita. O “alerta verde” aos poucos invade a tela e anuncia sua chegada. O retrato do ditador Emílio Garrastazu Médice, agigantado em um contra-plongé, materializa em uma única figura o mal que subjuga Eunice e os seus. Os agentes que invadem o lar dos Paiva surgem como figuras fantasmagóricas que irão assombrar aquela família durante o tempo de sua permanência e além. A maneira como operam, desde o fechar de cortinas, é responsável por preencher com escuridão a casa e a vida daquelas pessoas. Mas essas são apenas uma degustação do olhar detalhista de Salles na forma com que transmite em tela essa história. Sua obra incorpora as duas vivências daquela família, a solar e a soturna. Estas são pontuadas através da fotografia poderosa de Adrian Teijido, que alterna entre filtros amarelados e esverdeados. Para além, incorpora à montagem filmagens com câmera super 8 e a reprodução de fotografias da família, permitindo que encenação e realidade façam parte da mesma camada.
O som é outro elemento de grande importância na narrativa. A trilha musical diegética nos posiciona cronológica e geograficamente, como quando, por exemplo, faz ponte com as vivências de Vera em Londres e a febre da Tropicália no Brasil, ou quando utiliza Índio, de Caetano Veloso, como pano de fundo para o tempo em que Eunice defendia os direitos dos povos originários. A trilha musical extra diegética também é importantíssima na dramaticidade por ajudar a compor o tom das cenas. Warren Ellis traduz momentos e sentimentos através de suas composições. Para além da música, a presença de helicópteros fora do quadro pode ser notada ao longo da primeira metade do filme. O barulho das hélices ao fundo, preenchendo silêncios e abafando sons naturais ou se camuflando entre diálogos corriqueiros é um detalhe que merece ser apontado. O terror sonoro ganha mais intensidade a partir do momento que Eunice e sua filha Eliana (Luiza Kosovski) são encapuzadas e levadas a interrogatório. O ruído das ruas se amplifica com a mixagem de som para que possamos experimentar a aflição sentidas pelas personagens. Os gritos vindos das celas e salas de interrogatório do DOI-CODI invadem a mente de Eunice e Eliana com a mesma intensidade que invadem a nossa. A sensibilidade de Salles comprova que é dispensável exibir em tela os espancamentos ou qualquer outra técnica de tortura física. Ainda Estou Aqui não cai na armadilha de se tornar um filme fetiche para defensores de crime contra a humanidade. Nos tornamos companheiros de Eunice naquele cárcere onde é possível perder a noção do tempo. E nos deparamos com nossa impotência em apenas poder observar aquela mulher radiante se converter em uma sombra de quem era antes da visita de seus algozes.
Ainda Estou Aqui é um filme sobre memória. A memória de uma família, assim como a do nosso país. O diretor sabe posicionar a câmera de maneira intimista, em que compartilhamos de todo o afeto e dor daquelas pessoas. Ainda Estou Aqui também nos presenteia com olhares. Em diversos momentos somos cativados pela essência dos personagens, suas paixões e angústias compartilhados pela expressão de seus olhos. A maneira como Eunice e Rubens se olham, por exemplo. Selton Mello nos oferece um mar de doçura através do olhar e de seus gestos. Conseguimos sentir o amor e devoção que Rubens nutria pela esposa e filhos. Seu personagem permanece presente através da ausência: Na recusa de Nalu em tirar a camisa de seu pai, nas fotografias, nos filmes em super 8, na saudade. O diretor também nos empresta o olhar de suas personagens, Como quando observamos o retorno de Eunice, no lugar de Eliana observando o banho de sua mãe em águas que não conseguirão lavar tudo que está impregnado naquele corpo. A imagem da filha caçula Babiu olhando para o interior da casa vazia é mais um dos olhares que nos pegam desprevenidos.

Não tem como não falar da atuação de Fernanda Torres na pele de Eunice Paiva. É imensurável a entrega da atriz. Eunice é uma heroína impávida. Apesar de ter sua família dilacerada pela violência política, seguiu firme na criação de seus cinco filhos, encontrou forças para se tornar defensora de novas vítimas. Descrevo a mulher e visualizo sua intérprete como quase indivisíveis. E é na cena em que observa uma família completa e feliz em uma lanchonete que o filme faz com que choremos as lágrimas que Eunice se obrigou a conter. Esse olhar internalizado por Fernanda Torres eternizará a obra. Assim como é inesquecível o olhar final de Fernanda Montenegro, já como uma Eunice idosa e debilitada pelo Alzheimer, ao reconhecer a foto do falecido marido na televisão. A mãe de Fernanda Torres retorna sob a direção de Walter Salles para nos relembrar que a imagem é soberana. Sem qualquer linha dentro do filme, a atriz veterana nos emociona através do não dito, do não verbal.
O novo longa de Walter Salles carrega um feito heroico redentor. A possível premiação de Fernanda Torres, como reconhecimento de seu talento e sua entrega neste filme seria uma reparação pelo episódio de 1999. Para além, a história contada no filme, por sí só, já possui um teor heroico quase que messiânico, pois, sua conclusão só foi viabilizada graças às ações políticas de memória, assinadas por Dilma Rousseff, perseguida pela mesma ditadura retratada no filme. No que diz respeito à essa retratação histórica, é como se o próprio tempo estivesse corrigindo narrativas silenciadas, trazendo ao palco mundial essas histórias que estiveram nas sombras por tanto tempo. O filme que existe por trás do filme já carrega poesia o suficiente para ser enaltecido. Mas vou me ater ao que foi sentido diante da tela.
Para além do “clubismo” de um cinéfilo brasileiro vendo o prestígio de seu cinema emocionando para além de nossa fronteira, defendo o quão merecedor de suas indicações e premiações Ainda Estou Aqui é. Defendo para além. Selton Mello também merecia uma indicação como ator coadjuvante por sua entrega e pela importância de seu personagem na narrativa, ainda que fora do quadro na maior parte do tempo. Fernanda Montenegro igualmente. A magnitude de um olhar que nos atinge nas camadas mais profundas de nossas emoções e em poucos minutos. Uma aula. Walter nos entrega uma direção impecável, auxiliada por uma trilha sonora impecável que ajuda a contar a história e cada nota musical. A fotografia cirúrgica que dá textura aos sentimentos e as vivências do filme. E claro, a montagem que conflita a dança entre amigos e familiares com a marcha com palavras de violência e ordem enaltecidas pela tropa no quartel. Outro acerto é trazer para a tela apenas um único sepultamento: a do cachorro Pimpão. Afinal, os demais crimes eram todos encobertos, transportados. O filme de Walter Salles desenterra os fantasmas do passado do nosso país através de uma história redentora. Se faz importante principalmente nesses tempos em que a defesa da verdade e a criminalização de fake News são imperativos. Não estamos livres de reviver os anos de chumbo. Portanto, histórias como as da família Paiva não podem ser esquecidas. O cinema é um valioso guardião da memória.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.