Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Anora

4/5

Anora

2024

139 minutos

4/5

Diretor: Sean Baker

Meu primeiro contato com o estilo de Sean Baker foi através de Projeto Flórida, um filme independente que marcou presença no Oscar de 2018. Seu traço autoral se destaca ao trazer elementos do realismo mágico para narrativas protagonizadas por figuras marginalizadas. Com Projeto Flórida, o diretor me encantou com o olhar sonhador de uma criança em meio à miséria de quem não tem acesso à magia da Disney, apesar de ser vizinha do parque de diversões.

Em Anora, Baker direciona nosso olhar para uma dançarina exótica que acredita estar vivendo um sonho ao ser notada por um jovem milionário. Mais uma vez, ele reivindica os elementos do realismo mágico para contar uma história que subverte contos de fadas e questiona instituições através de rupturas e contrastes. Se existe um céu de pensadores, nele Arendt, Beauvoir, Foucault, Freud e Marx se olham e sorriem enquanto assistem a Anora. Afinal, Sean Baker consegue abrir discussões sobre a banalidade do mal, identidade feminina, relações de poder, comportamento edípico e luta de classes em seu novo longa.

Seu traço autoral se manifesta nos primeiros minutos. A abertura nos oferece a sensualidade de danças no colo, nudez iluminada por neon e o som de baladas eletrônicas para convidar – os espectadores masculinos – ao transe hipnótico do interior de uma boate de strip-tease. Bebidas à vontade e a permissão de toques garantidos por notas de dólar de três dígitos são apenas parte da artificialidade daquele “parque de diversões” para maiores de idade. Sem pestanejar, Baker estabelece a ruptura desse mundo ao mostrar a verdadeira realidade daquelas jovens mulheres no alvorecer do dia. No mundo real delas, as luzes neon estão apagadas.

O conto de fadas que Ani (Mikey Madison) acredita estar vivendo ao lado de Ivan “Vanya” Zakharov (Mark Eydelshteyn) é ilustrado pela câmera de Baker, que acrescenta novas camadas de magia à narrativa com suas lentes grande-angulares e luzes artificiais difusas. Para intensificar essa experiência, somos embalados pela música Greatest Days enquanto também nos deixamos convencer pelo que vemos na tela. Como torcemos pela protagonista, somos permissivos com a farsa, ainda que o diretor aponte vários indícios de sua inconsistência. Em minha defesa e na de Ani, também fomos moldados a acreditar em contos de fadas. E, afinal de contas, quem não assistiu a Uma Linda Mulher?

Sean Baker arquiteta a ilusão com uma beleza amplificada pela câmera de Drew Daniels (foto: divulgação)

Sean Baker é provocativo ao nos aproximar de Ani e seu mundo fora da boate e contrastá-lo com o mundo de Vanya. Enquanto a casa simples na beira da linha férrea está desabastecida de leite porque ninguém foi comprar, a mansão conta com diversos empregados para manter tudo impecável e saciar as vontades do herdeiro. Até o clima parece outro. Basta analisar a forma como a luz natural preenche os espaços em ambas as moradias. A roupa de cama, cujo brilho acetinado destaca o vermelho em meio a tons pastéis, faz com que a coberta da casa original sequer seja lembrada. Assim como o casaco de moletom não aquece com a mesma eficácia ou distinção de um sobretudo de peles. Sendo assim, não podemos julgar Anora por acreditar ter ganhado na loteria. Apenas os homens que orbitam sua narrativa – incluindo o diretor.

Mas a protagonista é violentamente despertada desse sonho com a chegada de Igor (Yura Borisov) e Garnick (Vache Tovmasyan), dois capangas a serviço da família de Vanya, que recebem ordens via celular de Toros (Karren Karagulian), um homem de confiança dos Zakharov. Vanya abandona a esposa e foge da residência correndo. Esse momento marca a ruptura da narrativa com os elementos que havia estabelecido. O sonho se converte num pesadelo. Ani descobre sua impotência quando é amarrada por Igor, silenciada por Toros e coagida a procurar Vanya para que possam anular o casamento – ainda que tenha sido o próprio Vanya quem sugeriu a união para conquistar o green card e evitar o retorno à Rússia. A dinâmica entre o quarteto na mansão é digna de um thriller, deixando-nos aflitos pela integridade de Anora, que sofre quase todos os tipos de violência.

O silenciamento como uma das punições (foto: divulgação)

A busca por Vanya nos momentos seguintes dilui o terror anterior e acrescenta um tom de humor ácido à narrativa, com os capangas sendo frustrados por forças superiores como o destino, as instituições estatais e até mesmo a própria família que os emprega. Essa jornada me remete a uma comédia dos anos 90 que marcou minha infância: Ninguém Segura Este Bebê. No filme de John Hughes, um trio de bandidos é constantemente frustrado na tentativa de capturar um herdeiro. Os arquétipos se repetem: Toros é o líder estressado, Igor o brutamontes sisudo e Garnick o pau-mandado sem iniciativa.

Fica evidente que o trio está em situação de inferioridade tanto por suas condições econômicas quanto por suas nacionalidades, aproximando-se mais da dançarina do que de seus patrões. Eles sequer vislumbram a vastidão da riqueza dos Zakharov. Além disso, a protagoniasta é uzbeque, enquanto o trio de capangas é armeno — ambos provenientes de países que integraram a Cortina de Ferro e, por isso, vistos como pertencentes a uma casta inferior pelos russos. O fato de estarem apenas cumprindo ordens ou “fazendo seu trabalho” leva os armênios a acreditarem que estão isentos de responsabilidade por suas ações contra Ani. Ainda assim, apesar de estarem em poder de Ani, seguem submetidos às demandas de seus patrões, que exigem renúncias constantes: Toros abandona o batizado do afilhado no meio da cerimônia, Garnick não recebe atendimento médico adequado após uma concussão, e Igor sequer comemora seu aniversário — ou recebe qualquer felicitação. O quarteto, assim como os demais funcionários da mansão, compartilha um processo de desumanização imposto pela mesma família rica.

A diluição da carga dramática pela comédia não me incomoda tanto quanto a conversão de Ani em coadjuvante de sua própria história. Ainda que a protagonista permaneça no centro da narrativa, suas ações se resumem a seguir o trio e ceder às imposições de Toros. Ani pode acreditar que tem agência, mas suas opções frequentemente são limitadas pelas estruturas de dominação masculina. Ela busca segurança no casamento, mas, no fim das contas, continua refém das decisões alheias — seja do marido, dos sogros ou do capital. Seu matrimônio não nasce de um amor ingênuo, mas de uma necessidade prática, escancarando a natureza transacional da instituição. Quando a família de Vanya tenta anular o casamento, evidencia-se o matrimônio como ferramenta de poder e dominação. A anulação forçada reforça a ideia de que uma mulher à margem da sociedade — seja como stripper, imigrante ou ambas — não tem controle sobre sua própria história.

Ani, como stripper, também enfrenta uma contradição central: sua sexualidade é exaltada como espetáculo para os homens, mas essa mesma exposição a coloca em uma posição de vulnerabilidade social. Seu corpo e sua feminilidade tornam-se mercadorias negociáveis, seja na boate, seja na relação com o filho dos oligarcas. Apesar de tentar usá-los como armas, ela continua sendo objetificada. A importância que Vanya dá a Ani fica evidente quando a abandona na mansão. Mas antes mesmo disso, ele já dava sinais de sua indiferença: a recusa em trocar olhares durante o sexo, o egoísmo de seu próprio prazer e a preferência por videogames em detrimento de qualquer interação mais profunda. Como a própria Ani afirma, Vanya só se casou com ela para afrontar a mãe. Usurpar o quarto dos pais para realizar suas fantasias sexuais, mais do que um traço de infantilidade, reafirma seu complexo de Édipo.

O desejo de liberdade de Ani esbarra nos mecanismos descritos por Beauvoir como essenciais para a manutenção da opressão feminina. Sob essa ótica, Anora dialoga diretamente com O Segundo Sexo, ao expor as barreiras sistêmicas que ainda impedem a autonomia plena das mulheres. Ani pode parecer forte e determinada, mas sua trajetória revela os limites da liberdade feminina em um mundo que ainda a vê como o outro — um corpo antes de um sujeito. Nem mesmo a mãe de Vanya escapa dessa lógica. Apesar de ser a verdadeira chefe da família, na mídia ela continua à sombra do marido. O próprio Vanya se apresenta como herdeiro do pai e pede que Ani o pesquise no Google, sem jamais mencionar a mãe — ainda que seja ela a responsável por castrá-lo. Nesse aspecto, Galinda castra todos os homens em cena: marido, filho e capangas. Sua relevância se confirma pelo uso constante de seu nome completo. E, ainda que rivalize com A-nora (piada pronta!), ambas se espelham como contrapontos uma da outra. Afinal, a influência e o poder de Galinda não ultrapassam seu microcosmo familiar.

Anora carrega a problemática de não conseguir estabelecer laços genuínos de apoio entre as figuras femininas. Fica evidente a competição entre as dançarinas da boate, sendo que uma delas é uma rival declarada. Aquela que se mostrava uma amiga próxima de Ani desaparece de sua vida após a festa de Vanya, e nem parece ser alguém em quem Ani poderia confiar, especialmente quando é sequestrada pelo trio. A colega com quem divide a casa mantém uma relação fria e impessoal, basicamente uma convivência compartilhada, tanto que desaparece da narrativa. O único indivíduo que demonstra algum grau de empatia por Ani é Igor, que, apesar de amarrá-la, devolve-lhe o anel no final — um gesto mais genuíno de pedido de casamento ou aliança do que o feito por Vanya.

Igor, um cavalheiro improvável ou Síndrome de Estocolmo?

O olhar de Igor enquanto Anora é ameaçada pela sogra revela uma conexão que transcende o clichê de um romance forçado, no estilo enemies to lovers. Anora nos oferece, na verdade, uma cumplicidade inesperada. A compaixão daquele que é a força bruta do trio se manifesta nos pequenos gestos de cuidado: ele carrega um lenço para proteger Anora do frio e a cobre com seu casaco durante o voo de volta. Sua revolta é profunda, mas sutil, quando reivindica um pedido de desculpas de Vanya por Ani. Ele a reconhece e a aprecia como ela é. Quando expressa sua preferência por Anora em vez de Ani, ele começa a vê-la como ela realmente é, em vez de uma versão mais bem aceita por todos. Por fim, é durante uma transa improvisada no carro com Igor que Anora experimenta um verdadeiro momento de troca de olhares, algo com o qual ela parece não saber lidar.

O final de Anora repete a fórmula de Projeto Flórida, nos deixando com um gostinho de esperança para o futuro da protagonista. Ainda que, na realidade, nossas projeções como espectadores acabem refletindo o que realmente espera por ela. O sabor amargo do derretimento de um sonho, profundamente enraizado culturalmente, ganha uma nota agridoce. A crítica social do diretor provoca reflexões ao trazer à tona, mesmo que de forma difusa, camadas mais profundas de personagens comumente marginalizados. Sean Baker consegue atualizar o conto de fadas e subvertê-lo com sua visão autoral, mas não consegue se livrar totalmente de uma dose de conservadorismo paternalista ao punir fisicamente e psicologicamente sua protagonista através das falas e ações dos outros personagens. É como se, no fundo, o visse como uma filha, mas ainda assim quisesse puni-la por sua sexualidade. O que é mais curioso, no entanto, é que o próprio diretor acaba reproduzindo a hipocrisia que denuncia: ao tratar sua protagonista com o mesmo moralismo punitivo que critica, Baker se coloca como parte do sistema que tenta expor. Suas escolhas formais são impecáveis, mas o olhar do diretor falha ao perder o foco na protagonista no meio do caminho. Vanya deveria ser apenas um coelho branco, um MacGuffin, mas a busca por seu paradeiro acaba consumindo o filme de forma excessiva. Será que Sean Baker se esqueceu de quantos quilates vale Anora? Toosh.

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

2 comentários em “Anora”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

Críticas
Alvaro Goulart

Kasa Branca

“Não tem mais jeito, Dé” Em alguns momentos

Rolar para cima