A direção de Marc Webb já dividia opiniões muito antes de Branca de Neve. Muita gente conheceu seu trabalho pelos filmes do Espetacular Homem-Aranha, que trouxeram Andrew Garfield como o “cabeça de teia”. O problema? Depois da trilogia bem-sucedida de Sam Raimi, ficou difícil comprar a visão de Webb, que se apoiava nos quadrinhos dos anos 2000. Particularmente, acho que ele acertou no Homem-Aranha, mas matou a personalidade do Peter Parker. Outros tiveram o primeiro contato com 500 Dias com Ela, aquele romance indie estrelado por Joseph Gordon-Levitt e Zooey Deschanel, que rendeu discussões intermináveis sobre quem era o verdadeiro vilão da história. Eu sempre achei que o personagem de Levitt era só um emocionado tóxico. Mas minha primeira experiência com Webb veio antes disso, nos videoclipes. Ele dirigiu para Evanescence, 3 Doors Down e Green Day, mas foi The Ghost of You do My Chemical Romance que me marcou. No clipe, a banda aparece como cadetes na Segunda Guerra Mundial, alternando entre um baile e o massacre na Normandia, claramente inspirado em O Resgate do Soldado Ryan. A montagem tem uma transição absurda, cortando da pista de dança para o desembarque com uma onda invadindo o piso de madeira. Webb parecia estar no auge criativo. Talvez devesse ter ficado por lá.
Antes mesmo de chegar às telas, Branca de Neve já colecionava polêmicas dignas de um conto de terror. A escalação de Rachel Zegler como a protagonista virou alvo de debate, especialmente quando comparada a Gal Gadot, que interpreta a Rainha Má. Surgiram comentários machistas sobre a disparidade entre as belezas das atrizes, mas, ainda que a crítica tenha um viés problemático, há uma pertinência na discussão, já que a obra original coloca a beleza como um elemento central do conflito. Mas nada repercutiu tanto quanto o comentário de Peter Dinklage, que criticou a abordagem dos anões, chamando o filme de um “retrocesso” na representação de pessoas com nanismo. A Disney até tentou contornar a questão, substituindo os sete anões por criaturas geradas em CGI, mas a simples notícia dessa decisão já foi recebida com desagrado pelo público.

Ironicamente, aquilo que parecia ser o calcanhar de Aquiles do filme se revelou seu menor problema. Branca de Neve falha em algo muito mais essencial do que os efeitos visuais. O verdadeiro desastre não está nos anões… e sim em alguém muito mais alto! Com 1,78m de altura, Gal Gadot deve ser uma das atrizes mais altas do elenco, mas nem isso, nem seu entusiasmo, nem sua beleza compensam a falta de talento. Sua performance como Mulher-Maravilha já ficou por um triz, sustentada mais pela entrega física nas cenas de ação do que por qualquer nuance dramática, e agora sua Rainha Má sofre com a mesma falta de carisma e profundidade. O problema maior, no entanto, está no exagero: convencida de que está acertando no tom de vilania, Gadot passa o filme desfilando um repertório de “carões” que mais parecem saídos de uma novela da Televisa. Mas sejamos justos: perto dela, até Thalía soa como Fernanda Montenegro.
A culpa não é só dela. A falta de uma direção de atores competente permitiu essa dissonância entre as performances do filme, e o roteiro também não ajuda. Sua vilã é completamente maniqueísta. Se o filme acerta ao dar um passado que conecta o público à protagonista, a antagonista simplesmente surge do nada e retorna para o nada. Nem mesmo o nome de Greta Gerwig, famosa por construir personagens femininas fortes e complexas, conseguiu salvar a vilã do conto de fadas. A madrasta de Branca de Neve é uma feiticeira narcisista movida pela obsessão com o próprio poder – que, segundo ela mesma, vem da beleza, e vice-versa. Mas o filme nunca se dá ao trabalho de explicar a origem dessa obsessão, nem de aprofundar qualquer discussão sobre padrões estéticos e sua relação com o valor das mulheres. Tampouco toca na objetificação feminina ou na ruptura com o papel decorativo de esposa. Nada disso. O filme reduz tudo a uma rivalidade rasa entre madrasta e enteada, baseada em inveja e megalomania.

Se por um lado a vilã é hiperbólica, a princesa é apática. Rachel Zegler não consegue replicar a energia que dedicou a West Side Story. O roteiro até constrói um arco dramático para a protagonista, apresentando-a como uma jovem moldada por lampejos de um passado distante e pela herança de algumas lições sobre justiça social (um tanto irônico, considerando que ela faz parte de uma monarquia, mas deixa quieto…). Branca de Neve não é apenas uma princesa encarcerada; ela sofre um apagamento, reduzida à condição de serviçal. Esse viés político se manifesta logo no primeiro encontro com Jonathan, um rebelde que rouba os excedentes da rainha para alimentar a população faminta. Antes de chamá-lo, ela o enxerga – mas ele não a vê, mesmo estando no mesmo espaço. É nesse instante que recebe seu primeiro “despertar”: ele a confronta com a realidade da tirania da rainha e da negligência da princesa herdeira – ela própria, que sequer havia sido reconhecida.
Os anões não são apenas alívio cômico ou meras escadas para o amadurecimento de Branca de Neve – eles possuem uma função narrativa mais rica, e o filme até acena para questões como bullying e julgamento precipitado. Dunga, por exemplo, não é reduzido a um personagem neurodivergente, mas alguém que carrega o medo de se pronunciar, um receio que encontra eco na própria protagonista. Sua jornada reflete a de Branca: enquanto ela o ensina a assobiar e o encoraja a falar, também vai encontrando sua própria voz. Já Zangado, muitas vezes visto como o antagonista dentro do grupo, é ressignificado não como um ranzinza gratuito, mas como uma figura protetora, cuja aspereza esconde um olhar atento e cuidadoso. O filme poderia aprofundar ainda mais essas camadas, mas ao menos reconhece que os anões são mais do que caricaturas ou simples suporte cômico – eles são, de certa forma, catalisadores do crescimento da protagonista.
Branca de Neve sempre foi um conto sobre amadurecimento. A Rainha Má não supera seu ciúme edípico pela atenção conquistada pela enteada na adolescência. Seu narcisismo transborda nas conversas com o espelho mágico, que só existe para moderar sua insegurança diante do próprio envelhecimento e do florescimento da princesa. Branca, por sua vez, vivia num estado de infantilização – alimentada até pelos animais da floresta –, alheia às responsabilidades do título que carrega. Sua maturidade se desenvolve através de seus sete “espelhos”: os anões. Diferentemente da Rainha, que exerce tirania sobre sua enteada, Branca ocupa uma posição maternal diante deles, mas sem a carga da competição. Pelo contrário, ali ela é idolatrada.
A maçã sempre foi um teste de resistência ao desejo, seja para Branca de Neve, Eva ou as deusas do Olimpo – Afrodite, Hera e Atena. O vermelho intenso e magnético carrega uma simbologia sexual, reforçando o caráter conservador do conto de fadas. Mas o que faz desta versão um coming of age é seu subtexto político. O filme até acena para Maquiavel ao estabelecer que o verdadeiro poder de Branca de Neve não está no medo, mas no reconhecimento de seu status e na admiração de seus súditos. Jonathan a instiga desde o início a confrontar a tirania, e embora exerça o papel de “príncipe”, sua função é mais instrumental do que heroica. Ele não salva a princesa – pelo contrário, é ele quem é resgatado. O problema é que não há química nenhuma entre os dois. Se a Disney tivesse coragem de abrir mão do romance, talvez o filme funcionasse melhor. As cenas românticas são piegas e entediantes, e os números musicais entre eles provocam mais sono que a maçã envenenada.

Aliás, como musical, Branca de Neve é insosso. A direção de arte e os figurinos, embora visualmente agradáveis, falham em emocionar ou encantar. Nenhuma canção fica na memória – exceto as dos sete anões. Heigh-Ho se destaca ao apresentar cada um deles por meio de acrobacias e movimentos sincronizados que exploram deliciosamente o caos que provocam. De longe, o melhor momento do filme. Já o número musical da Rainha Má beira o constrangedor. All is Fair até transmite sua visão distorcida do mundo e aposta em um visual divertidamente mórbido, com sombras invadidas por luzes verdes. Mas a coreografia desajeitada e a interpretação teatralmente desafinada de Gal Gadot fazem da cena um desastre – só não mais vergonhoso que La Vaginoplastia, de Emilia Pérez. Nem Waiting On A Wish consegue emocionar. O solo da protagonista soa apagado, assim como sua intérprete. O filme se encerra com Good Things Grow, uma música que conclui o amadurecimento da princesa, mas é tão genérica que passa despercebida. O mais grave? A adaptação fracassa até como musical – um defeito ainda mais imperdoável considerando o histórico de Marc Webb na direção de videoclipes memoráveis.

O grande problema do filme é que a direção não consegue definir para onde quer levar a história. Os anões, curiosamente, salvam o longa justamente por abraçarem a artificialidade do CGI, que, em vez de ser um empecilho, adiciona graça, estranheza e um tom lúdico à narrativa. O mesmo vale para os animais digitais, que trazem mais fofura, delicadeza e magia do que versões hiper-realistas conseguiriam. O problema surge quando esse encantamento visual não se conecta com o restante do filme. O bosque encantado tem uma coesão estética e tonal que não dialoga com o mundo “real”, onde tudo soa deslocado e artificial da pior maneira possível. Até mesmo a construção do terror e a subversão da expectativa na cena da floresta são interessantes isoladamente, mas não servem para unir esses dois universos. O contraste fica ainda mais gritante quando percebemos que o CGI da floresta parece mais orgânico do que os números musicais excessivamente ensaiados e mecânicos, que não convencem pelo exagero da alegria fabricada. A Rainha Má, por sua vez, está num tom tão acima que parece saída de um filme diferente. Além disso, o longa falha em respeitar suas próprias regras de realismo – Branca de Neve, vestida de serviçal enquanto executa trabalhos braçais, de repente aparece no bosque colhendo maçãs trajada como princesa, como se o figurino não fosse um marcador narrativo.
Se o filme todo abraçasse a fantasia de sua estética digital, poderia soar mais coerente e até mais encantador. Mas, ironicamente, é o realismo imposto pelo live-action que torna essa versão de Branca de Neve tão deslocada e esquecível. No fim das contas, é triste que o primeiro longa-metragem de animação da Disney, um divisor de águas na história do cinema, tenha sido reinterpretado de forma tão insossa, sem a magia e a inovação que o tornaram atemporal.
Branca de Neve tem sua estréia dia 20 de março, nos cinemas.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.
2 comentários em “Branca de Neve”
Eu discordo o filme foi perfeito emocionante trouse fato que te o desenho a atriz que fez a branca de Neve deu mais vida a personagem deu uma personalidade
Fico feliz que tenha tido uma experiência melhor que a minha.