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Girassol Vermelho

2/5

Girassol Vermelho

2025

110 minutos

2/5

Diretor: Eder Santos, Thiago Villas Boas

O cinema brasileiro, desde a retomada, se agarrou ao realismo como se fosse dogma. O resultado? Um mar de filmes que transformam a tela em vitrine de tragédias sociais, reforçando a ideia de que a única função do cinema nacional é a denúncia. Violência gráfica se tornou assinatura estética, atraindo um público específico e espantando outro. Cidade de Deus e Tropa de Elite cristalizaram essa visão no imaginário popular, sendo constantemente citados como “o” cinema brasileiro. Ambos retratam a periferia sob o prisma da brutalidade urbana, do domínio territorial por facções criminosas e dos conflitos sangrentos que dali emergem. E assim nasceu o mantra dos desinformados: “filme brasileiro só tem favela, palavrão e sacanagem” – um reducionismo que ainda adiciona, de brinde, as heranças da pornochanchada e da Boca do Lixo.

Mas basta sair da bolha do mainstream para perceber que a produção nacional é muito mais do que isso. Há décadas, cineastas vêm subvertendo essa obsessão pelo realismo e abraçando o fantástico como meio de expressão e crítica. Glauber Rocha fez isso em A Idade da Terra e Terra em Transe, Walter Lima Jr. seguiu o mesmo caminho em Brasil Ano 2000. Mojica Marins transformou o terror em ferramenta para questionar dogmas morais e sociais, com Zé do Caixão escancarando o delírio conservador muito antes disso virar pauta de rede social.

E o legado continua. Fora do circuito comercial, o terror nacional respira e prospera em obras como Medusa, de Anita Rocha da Silveira, e Boas Maneiras, de Juliana Rojas. No realismo fantástico, Eder Santos se consolida como um dos maiores expoentes do país. Seu cinema habita paisagens distópicas e desoladas para refletir sobre identidade e existência. Em Deserto Azul, um homem vaga pelo Atacama buscando respostas para um mundo futurista que ele já não consegue compreender.

Agora, em Girassol Vermelho, Eder adapta Murilo Rubião e volta a explorar o existencialismo ao lado de Chico Diaz. Romeu, seu protagonista, larga tudo e embarca num trem rumo ao desconhecido, chegando a uma cidade distópica onde a liberdade é tão ilusória quanto o destino. Se antes a vastidão do deserto evocava a solidão, agora é a cidade industrial, sufocada por um nevoeiro opressivo, que embaralha as percepções. O que resta é a hipnose visual e a sensação de que, no cinema brasileiro, sempre há um caminho além do óbvio – basta ter disposição para enxergar.

Romeu embarca no trem como quem foge, mas cada estação parece lhe lembrar que ninguém escapa de si mesmo. A primeira parada, Ignorância do Sofrimento, o recebe com a promessa de um alívio ilusório: ali, as dores do passado são enterradas sob a anestesia da indiferença. A segunda, Inocência, ostenta o nome de forma irônica – os passageiros, ao contrário do que ele esperava, o enxergam melhor do que ele mesmo. Sempre que tenta se concentrar na leitura, alguém o interrompe com uma observação que mais parece um diagnóstico. “Liberdade e culpa não andam juntas”, solta uma mulher de olhar vazio, como se arrancasse de Romeu a justificativa para estar ali. No fundo, ele sabe que Sartre tinha razão – estamos condenados à liberdade, mas essa condenação não vem sem peso. A cada quilômetro percorrido, as amarras do passado apertam ainda mais.

A despedida clássica diante do trem de vagão único (Imagem: Divulgação)

Na terceira parada, Loucura, a viagem entra em território definitivo. Ali, o trem já não é só um meio de transporte, mas um tribunal sem juízes, onde cada olhar parece proferir um veredicto. “Medo é igual veneno”, afirma um rapaz mais novo que ele. O veneno, Romeu sente na garganta – uma verdade tóxica, da qual ele tenta escapar, mas que já faz parte de sua corrente sanguínea. Kierkegaard chamaria isso de angústia: o desconforto de quem percebe que o abismo da liberdade não oferece respostas prontas. A cada nova parada, ele percebe que os passageiros não são apenas estranhos, mas ecos de sua própria consciência, desmontando, um a um, os subterfúgios que ele criou para seguir viagem sem encarar seu real motivo para estar ali.

Ao chegar à cidade, Romeu se depara com um cenário que parece suspenso no tempo, onde o medo é uma constante invisível, mas onipresente. Os cidadãos, apáticos e distantes, parecem presos em uma rotina que os impede de perceber sua própria alienação. Cada olhar é vago, cada gesto é mecânico, como se a cidade fosse uma grande engrenagem, onde a individualidade se perdeu há muito tempo. No centro desse ambiente, uma figura misteriosa e onisciente, interpretada por Daniel de Oliveira, observa cada movimento com um olhar quase sobrenatural, lembrando O Grande Irmão de Orwell. Sua presença constante reforça a sensação de vigilância e controle absoluto, estabelecendo uma hierarquia invisível, mas implacável. Aqui, a tecnologia, em vez de libertar, parece agravar a primitividade do sistema, transformando a cidade em uma máquina de opressão, onde o trabalho manual, duro e repetitivo, se torna a única forma de existência. A estética industrial da cidade, com suas fábricas de cimento, é um reflexo dessa realidade: um ambiente claustrofóbico e esmagador, que reforça a sensação de que todos estão presos em um ciclo interminável de produção e exploração.

A presença de figuras militarizadas, vestindo uniformes que lembram a SS nazista, é um ponto de ruptura visual que reforça o caráter distópico da cidade. A cidade em si parece ser um pastiche de 1984 e Brazil – O Filme, unindo o controle totalitário com a opressão industrial. O cimento e outros elementos de trabalho braçal não apenas remetem à exploração das classes operárias, mas são usados também como instrumentos de tortura e controle, quase como se o ambiente físico da cidade fosse projetado para sufocar qualquer vestígio de liberdade ou resistência. O trabalho, longe de ser um meio de emancipação, se transforma em uma ferramenta de alienação, em que os indivíduos são reduzidos à condição de peças de uma máquina que os desumaniza, enquanto o medo, sempre presente, os mantém subordinados a um poder absoluto e invisível.

Luiza Lemmertz, no papel da femme fatale, surge como uma figura enigmática e carismática, mas sua construção dentro da narrativa se limita ao estereótipo do arquétipo de gênero noir, sem grandes desenvolvimentos. Ao contrário de Chico Diaz, que pode explorar seu personagem com mais liberdade dentro da teatralidade, ela é restrita ao papel da mulher fatal, cuja profundidade de suas falas possuem a profundidade de um pires. Sua presença, embora de certo impacto, parece servir mais para escancarar o desejo reprimido de Romeu do que para oferecer uma camada emocional ou psicológica mais complexa. A cena que manifesta esse desejo sexual de forma explícita é uma das mais viscerais do filme, construída sob uma luz escarlate hipersaturada que se mistura aos corpos que se tocam, como se o desejo, antes contido, finalmente explodisse em sua máxima latência. A sensualidade da cena é palpável, com uma fotografia deslumbrante que faz lembrar, até mesmo, um episódio de Sense8. A luz azul difusa, que paira ao redor da cidade e seus habitantes, contrapõe com o vermelho pulsante da cena, representando o contraste entre a apatia e a repressão versus o desejo e a tensão latente.

Sagrado e profano convergem no mesmo quadro: A Dama Fatal reencena a Pietá. (Imagem:Divulgação)

O filme, de certa forma, faz uma amalgama entre a subversão de Casablanca e A Via Láctea de Jean-Pierre Melville. A reunião com o passado e a mulher da vida de Romeu acontece em um ambiente denso e nebuloso, como se a névoa que envolve a estação de trem intensificasse a dramaticidade e o chiaroscuro das relações, assim como o fazia o aeroporto em Casablanca. Porém, no caso deste filme, o espaço não é o de um aeroporto, mas uma estação de trem – uma escolha que subverte a ideia do retorno, pois, no fim, Romeu e Eva tem a manifestação de sua “Paris”, ao contrário de Casablanca onde a cidade se manteve apenas como um idela de retorno ao passado idealizado. Aqui, no entanto, a alegoria se intensifica: Romeu não é apenas o homem que reencontra sua Eva, mas ele também é a subversão do próprio Adão. Ele oferece a maçã do desejo, simbolizando tanto a liberdade quanto o pecado original – o fruto proibido, que, ao invés de ser dado por Eva, é distribuído pela figura masculina. Ele detém o pecado e é o responsável por abrir as portas para o desejo, uma virada na tradição bíblica e uma crítica à moralidade que o filme tenta denunciar.

Essa mistura de referências e subversões faz do filme uma espécie de pastiche, em que o velho mundo do cinema encontra novas interpretações, mas sem alcançar a profundidade emocional necessária para justificar sua estética arrojada. A fotografia do filme, indiscutivelmente belíssima, tem o mérito de criar uma atmosfera única, mas ao se apegar demais à estética, acaba por esvaziar o impacto emocional. O esforço em provocar estranhezas formais, embora interessante, também cria uma barreira para o espectador médio, que se vê desconectado das questões existenciais que o filme tenta abordar. No final, as escolhas de direção parecem pretensiosas e vazias, e o filme se revela inócuo. Os dilemas internos de Romeu, tão centrais para a narrativa, não são explorados de forma suficiente para dar peso ao conflito. O enfrentamento ao conservadorismo e a acenos à ditadura e ao nazismo, embora relevantes, acabam se resumindo a uma tensão reprimida, mais ligada ao desejo do que a um real questionamento social ou político. É até um tanto desconcertante questionar: é só isso, tesão reprimido?

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