Apesar da pouca oferta de filmes lançados hoje em dia, o gênero de guerra sempre esteve na mira o meu olhar. Eles são mais uma ponte entre eu e meu pai, e que também era entre meu pai e meu avô. Lembro de estar brincando com outras crianças na casa da minha avó e estar meu pai e meu avô assistindo a Além da Linha Vermelha, do Terrence Malick. E eu, já na adolescência, aluguei esse mesmo filme para assistir com meu pai. Ali descobri um olhar mais existencialista sobre a guerra, que não conhecia ao ver O Resgate do Soldado Ryan, por exemplo. Apesar de até hoje aquela introdução com a chegada à Normandia ter ficado eternizado em minha memória, nada se compara a transformação de Florya, em Vá e Veja. Para o Alvaro Goulart pai, o melhor filme de guerra segue sendo Falcão Negro em Perigo… ele já viu tantas vezes que já até decorou as falas. Ainda que discordemos na construção dos nossos rankings e em nossas percepções, a melhor companhia para filmes do gênero segue sendo a dele.
Os anos de ocupação americana no Afeganistão e Iraque já renderam muitas histórias que foram contadas em tela. Ou para retratar o impacto da guerra sobre um indivíduo, como os oscarizados Guerra ao Terror e Sniper Americano, ou para trazer uma reprodução hiper-realista de uma operação bem ou mal-sucedida. Esse último é o caso de Tempo de Guerra, que reconstrói uma operação em Ramadi, Iraque. A produção de guerra da A24 surge da parceria entre Ray Mendoza com Alex Garland, como resultado da simbiose do consultor e ex-combatente com o diretor durante a filmagem da invasão à casa branca em Guerra Civil. O longo se propõe a retratar os eventos da operação que marcou para sempre a vida daquele grupo de Seals, em especial a do paramédico e atirador líder Elliot Miller (Cosmo Jarvis).
Tempo de Guerra estrutura sua proposta no hiper-realismo e na imersividade durante a experiência cinematográfica. As escolhas formais de Garland deixam claro a intensão do diretor em fazer o espectador se sentir parte daquele grupamento. Até mesmo na cena inicial, com a festa que antecede a missão, a forma de filmar já estabelece essa dinâmica. Outro fator que escancara esse hiper-realismo é a ausência de elipses. Aqui o tempo morto é essencial para a experimentação desse campo de batalha. O tédio faz parte da missão. Afinal, não há muito o que se fazer além de posicionar equipamentos de comunicação e observar com a luneta de um rifle de precisão a movimentação após se estabelecer em um ponto estratégico. É aguardar novas instruções ou o que estaria, de fato, por vir…

A movimentação de uma guerrilha local rompe o silêncio e o tédio com tiros e a deflagração de uma granada. Situação contida? Jamais. O Iraque está sob ocupação americana desde 2003. A segunda incursão é ainda mais violenta. Na cadeira da sala de cinema, sentimos outra explosão e nos sentimos tão atordoados quanto o soldado Ray Mendoza (D’Pharaoh Woon-A-Tai) — o som é um elemento importantíssimo para essa experiência imersiva. É a partir dessa segunda explosão que o filme deixa claro seu compromisso com a crueza da guerra. A exibição de um corpo mutilado, cujo torso partido ao meio deixa à mostra partes dos órgãos, me faz lembrar a cena da Normandia de O Resgate do Soldado Ryan, em que um soldado é arrastado com os intestinos à revelia. Enquanto esperam por resgate e se aquartelam no imóvel que ocupavam, a imagem de uma perna decepada se faz presente dentro do quadro.
Mas o realismo de Tempo de Guerra ultrapassa os corpos destroçados. Vemos a incapacidade em liderar sendo assumida pelo líder de equipe Erik (Will Poulter) que transfere seu comando a outro. O escorregão em meio a ação do tenente McDonald (Michael Gandolfini), o medo da morte do soldado Sam (Joseph Quinn) e a ansiedade pelo combate do inexperiente soldado Tommy (Kit Connor). O filme não blinda as decisões equivocadas como o uso da marreta para invadir um local que acaba denunciando a posição do grupo, ou as pisadas e tropeços sobre os colegas feridos, por exemplo. Afinal o medo, os erros e o desespero estão tão presentes em um campo de guerra quanto as armas e os mortos.
Tempo de Guerra, ou Warfare, é irônico enquanto título. Pois não se aprofunda nos pormenores desse evento que já perdura por mais de duas décadas. Tão pouco busca ser uma cinebiografia de um soldado ou de um grupamento. Ele faz o recorte da experiencia da guerra a partir do ponto de vista do soldado americano, em uma única missão. Mas justamente por se assumir enquanto metonímia, ele é tão contundente. Missões aparentemente simples como a de observar a movimentação de um mercado podem se converter diversas baixas. E elas se repetem continuamente ao longo de todos esses anos. E diversos corpos são mutilados e vidas abreviadas nesse processo. O tempo da guerra é na realidade, um tempo cíclico.
Dentro desse processo de banalização da guerra, a crítica ao conflito também se dilui. O hiper-realismo, embora em alguns momentos provoque repulsa ao exibir pedaços de corpos, também desperta fascínio nos entusiastas do gênero — fascínio esse que acaba abafando qualquer possibilidade de reflexão, substituído pelo frenesi da adrenalina que a encenação bélica oferece. Soma-se a isso a superficialidade com que os personagens são tratados. Conhecemos tão pouco dos soldados que, às vezes, nem lembramos seus nomes — apenas os rostos dos atores. Pode-se argumentar que isso é proposital, refletindo o caráter descartável do indivíduo na lógica da guerra. Mesmo assim, falta densidade.
Mais grave ainda é o apagamento dos civis. As famílias que residiam no prédio invadido foram, para mim, o principal foco de preocupação — e ainda assim não temos sequer um nome, uma história, nada. A população local, verdadeira vítima do conflito, aparece apenas como pano de fundo: seja como a família encurralada na construção tomada pelos soldados, seja como os supostos milicianos que atacam o grupamento. Nesse ponto, Tempo de Guerra repete o mesmo problema de Falcão Negro em Perigo: transforma o território invadido num palco onde só os dramas dos americanos importam.
Nos momentos finais, o filme até tenta insinuar uma crítica — o pai caminhando pelos escombros ensanguentados do que um dia foi seu lar, os “rebeldes” circulando livremente sem sequer empunhar as armas — mas é tarde demais. O estrago já está feito. A destruição fica para os que ficam. Os EUA, como sempre, têm o privilégio de ir embora. Voltar pra casa. Se há alguma crítica, ela é tímida, sempre centrada na dor dos soldados americanos, como se o vitimismo deles fosse o único digno de registro.
Apesar de apresentar novos rostos de talento, como fizeram O Resgate do Soldado Ryan e Falcão Negro em Perigo em suas épocas, Tempo de Guerra não me parece destinado a se tornar tão marcante quanto esses títulos. Falta-lhe o peso simbólico que transforma um filme de guerra em experiência duradoura — aquela que revisitamos, debatemos, ou simplesmente guardamos, como guardei a chegada à Normandia ou a transformação de Florya em Vá e Veja.
Ainda que procure homenagear o soldado Elliot Miller, o filme se ancora numa narrativa genérica, que acaba por propagar a invisibilização — ou pior, a descartabilidade — dos dois lados da batalha. Os soldados aparecem como peças substituíveis e os civis, como meros obstáculos no caminho. Há momentos de imersão e tensão, sim, mas a reflexão se dilui no frenesi da ação. E por mais que haja uma fagulha de crítica entre escombros e vísceras expostas, ela termina onde quase todos esses filmes terminam: uma propaganda do sofrimento do soldado americano. Tempo de Guerra até nos leva a guerra. Mas, apesar da edição de som e mixagem impecáveis, seu barulho não propõe o fim do conflito.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.