Uma História de Natal (A Christmas Story, Estados Unidos/Canadá, 1983). Direção: Bob Clark. Roteiro: Jean Shepherd, Leigh Brown, Bob Clark. Elenco: Peter Billingsley, Ian Petrella, Melinda Dillon, Darren McGavin, Scott Schwartz, Tedde Moore, R. D. Robb, Jean Shepherd.
Na medida em que as crianças começam a se amontoar em frente a uma loja de brinquedos e esfregar os seus rostos na vitrine, algumas sonham com a sua bola de futebol, outras com um trem percorrendo a ferrovia montada na base da árvore de natal. O garoto de 9 anos de idade Ralphie tem em mente um presente diferente. Ele sonha com uma Daisy Red Ryder Carbine Action BB Gun, uma espécie de rifle de ar comprimido, apesar de terminantemente proibido pela mãe de possuir o brinquedo (“você vai acertar seus olhos”, ela diz). Ambientado na década de 40, a jornada do garoto para convencer os pais, ou sua professora ou Papai Noel de que aquele é o melhor presente de natal é o fio condutor da narrativa de Uma História de Natal, divertidíssima comédia de humor-negro, que nos dias de hoje mantém viva a sua essência crítica da conservadora sociedade norte-americana e de suas convenções.
Baseado no livro de Jean Shepherd escrito em 1966 (“In God we trust, all others pay in cash”), antes do desbocado criminoso Willie, interpretado por Billy Bob Thornton, conquistar (e chocar) com o sarcasmo politicamente incorreto de Papai Noel às Avessas, Ralphie já demonstrava um virtuosismo espirituoso, mascarado no ingênuo olhar infantil, e presente em irônicas sequências oníricas. Empunhando a sua BB Gun contra bandidos que tentavam invadir a sua casa – certamente, a inspiração de Kevin McAllister em Esqueceram de Mim e o que, nos dias de hoje, seria um ultraje aos rígidos padrões da classificação indicativa norte-americana -, ou se fingindo de cego para punir os pais que não lhe deram seu cobiçado presente, Ralphie exibe a fértil imaginação de um garoto que cresceu ouvindo seu programa favorito no rádio.
Isso é escancarado na eloquente narração do próprio autor Jean Shepherd, a voz adulta de Ralphie, o que resulta no tom autobiográfico das aventuras cotidianas do garoto e de como ele enxerga o mundo a sua volta. Dessa maneira, o ritual infantil de desafios para forçar um colega a lamber o gelado poste e o bullying sofrido por uma dupla de valentões assumem feições realistas e consequências mais drásticas, culminando na adjetivação covarde e egoísta à personalidade do garoto, evitando transformá-lo no anjinho que não é. Simultaneamente, a narração concebe a família de forma lírica, emocionando particularmente na descrição da sua subserviente mãe, retratada como a tradicional mãe suburbana, “ela não comeu uma refeição quente nos últimos 15 anos”.
Ademais, a família disfuncional do garoto é um espetáculo a parte, protagonizando eventos prosaicos que, ao mesmo tempo que atiçam o nosso interesse e curiosidade, passam desapercebido aos desleixados olhos de Ralphie (acostumado com essas demonstrações). As preocupações da mãe superprotetora agasalhando o irmãozinho – o que rende posteriormente inúmeras gags na incapacidade do garoto de movimentar-se -, a maneira que ela o obriga a comer toda a sua refeição, imitando um porco caçando trufas na lavagem (retratos do bullying paterno) e, literalmente, a lavagem da boca de Ralphie com sabonete após a pronúncia de um palavrão (“fuuuudge“) apenas contribuem na estranha educação dos filhos daquela família. Porém, o evento mais inusitado testemunhado por Ralphie é o presente recebido e idolatrado por seu pai, um abajur na forma da perna de uma mulher.
Dirigido com personalidade e ousadia por Bob Clark, especialmente se considerarmos os púdicos tempos atuais, a trajetória do garoto derrapa eventualmente no tom episódico, o que não prejudica a narrativa, pois as situações impostas (a proposta de uma redação, a visita a uma loja de brinquedos) são divertidíssimas e refletem o aspecto consumeirista natalino e a ingenuidade de Ralphie em muitos momentos. Tome neste caso a visita ao Papai Noel, desde a fila quilométrica e a ansiedade de Ralphie majorada pela hora avançada (a loja fecha as 21 horas), alçada a um exemplar de terror, no uso da câmera subjetiva e do ar mal encarado do bom velhinho e seus duendes, finalmente concluindo na vertiginosa descida de um escorregador no meio da loja.
Da mesma maneira, a montagem de Stan Cole abusa de elipses escrachadas e de cortes acertados, como aquele que concatena a abertura do tampo de um vaso sanitário e o close na panela de cozido do almoço. A fotografia de Reginald H. Morris investe em bem-vindas sombras, e a predileção de manter a câmera muito próxima ao seu protagonista.
Apresentando um protagonista inesquecível, entusiasta e furioso, politicamente incorreto e ingênuo, Peter Billingsley transforma Ralphie em um endiabrado monstrinho encerrado no coração de uma criança, como qualquer outra, que sonha em acordar na manhã de natal e rasgar seus embrulhos natalinos e descobrir as surpresas deixadas. Com seu largo sorriso, os olhos vidrados protegidos detrás do cafona par de óculos e o cabelo tradicionalmente penteado para o lado, Peter Billingsley transforma o sonho por sua BB Gun no equivalente àquele sonho por um videogame ou uma bola de futebol, ele é imprescindível para completar o natal do pequeno. Quem de nós gostaria de ver uma criança triste e desiludida na manhã desta data festiva?
Eu certamente que não.
(Esta crítica integra o Especial de Natal do Cinema com Crítica ao longo de todo mês de dezembro)
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.