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Diário do Festival de Cannes, Dia 3

Diário do festival de Cannes, dia 3

Com Top Gun, o novo de James Gray e um filme protagonizado por um burrinho!

Tom Cruise em Top Gun: Maverick é a cereja do bolo de um dia com 5 filmes! 

A Esposa de Tchaikovsky (Zhena Chaikovskogo, 2022), de Kirill Serebrennikov

Apesar da proibição de jornalistas russos favoráveis ao regime de Putin no Festival de Cannes de 2022, em decorrência da Guerra na Ucrânia, a curadoria admitiu a biografia do dissidente Kirill Serebrennikov sobre Antonina Miliukova, esposa do compositor Pyotr Tchaikovsky (de O Lago dos Cisnes, O Quebra Nozes). A escolha dela como objeto da biografia ao invés dele é facilmente compreendida quando conhecemos a personalidade de Antonina como é retratada em Tchaikovsky’s Wife. Após ser apresentada ao compositor durante a festa de um amigo em comum, Antonina convida-o à sua casa e ambos se casam, um casamento de conveniência em razão da orientação homossexual do compositor. 

Praticamente uma stalker no século XIX, Antonina acredita que Tchaikovsky lhe fora dado por deus, e que só este poderia separá-los. A personagem-título praticamente se arrasta atrás de migalhas de afeto ou reconhecimento, na tentativa de ter retribuído o “amor” que sente por ele. Mas não há amor, ao menos não na óptica de Kirill, há somente um relacionamento obsessivo que esbarra na parede de sexismo e misoginia que há do outro lado. É uma linha muito tênue sobre a qual caminha Kirill, inspirado em relatos da época e na biografia do compositor escrita por seu irmão, porque a perspectiva adotada pode ser interpretada da mesma forma como as ações tomadas para esconder e silenciar Antonina: o pagamento de pensão ao ostracismo na sociedade, até o envio de homens para que esta escolhesse com quem desejaria ficar. 

Enquanto isso, a narrativa apresenta problemas em retratar a homossexualidade do compositor senão de modo pejorativo. É compreensível que Antonina não soubesse aceitar naquela época a relação entre pessoas do mesmo sexo que, nos dias de hoje, na Rússia, é criminalizada, mas que Kirill pareça compartilhar essa mesma visão, não. 

A biografia tem problemas morais de abordagem, que passeiam pelo ponto de vista masculino da história de uma mulher, até a reprodução narrativa do preconceito ilustrado. No entanto, não há como ignorar as decisões de linguagem cinematográfica que transformam a experiência de Antonina em um pesadelo: a realidade se funde com a imaginação dela em momentos em que, mesmo nós, não temos a capacidade de discernir porque estamos dentro de sua cabeça. Não sei responder, por exemplo, se a proximidade que há neste ou naquele momento entre ela e o marido não sejam frutos de uma imaginação fértil que a aproxima da enfermeira Annie Wilkes, de Louca Obsessão. A direção também expressa na fotografia obscurecida e esverdeada, tal como se estivesse doente, o que é estar dentro da cabeça de Antonina, que chega mesmo a se flagelar com cera de vela pelo marido que não a quer. 

Os planos-sequências do início e final conferem um sentido de urgência à trajetória de uma personagem por quem não estabelecemos conexão, embora possamos sentir a dor com que convive, expressada em símbolos (alguns óbvios) como aquele em que cai literalmente da janela do apartamento como se caísse em direção à loucura. A mortalha que cobre o seu rosto é como a trilha sonora que mais silencia do que fala, escondendo o rosto de quem era tratada, na melhor das hipóteses, como um inconveniente. 

Alyona Mikhailova é uma atriz tremenda, que tem o trabalho de conferir profundidade e tragédia à personagem que a direção vilaniza. Já Odin Lund Biron, apesar de menos presente, pois seu Tchaikovsky é distante dentro da narrativa, encontra um meio de expressar a responsabilidade emocional que sente por Antonina e, ainda assim, atuar de modo injusto com ela. A biografia é questionável pelo material em que se baseou e pela abordagem de quem está detrás das câmeras, mas seus valores formais são inegáveis e envolventes. 

ZHENA CHAIKOVSKOGO - Festival de Cannes 2022

Harka (2022), de Lotfy Nathan

Harka é um dentre tantos herdeiros do clássico do neorrealismo Ladrões de Bicicleta, uma narrativa que verte o olhar às pessoas marginalizadas e invisibilizadas na sociedade, que somente sobrevivem dentro de um mercado de trabalho injusto e opressor, para cumprir com as obrigações estabelecidas por bancos e em relação às quais o Estado é omisso. É o drama de Ali (Adam Bessa), que trabalha na venda clandestina de gasolina contrabandeada e recebe um trocado de seu patrão. A situação muda quando, após a morte do pai, é encarregado de tomar conta das irmãs, no mesmo período em que é ameaçado de despejo pelo banco. 

Do ponto de vista da história, Harka insere obstáculos intransponíveis para o homem pobre: como não há vagas de trabalho, Ali é obrigado a trabalhar na criminalidade, porém, apesar de haver acumulado uma quantia significativa, o banco só aceita pagamento integral da dívida contraída. A situação evolui em desespero, depois de a polícia confiscar o carregamento de gasolina que Ali havia contrabandeado, achacá-lo e espancá-lo depois de recusar o pagamento do suborno. Sem saber a quem recorrer, Ali presta queixa no município, sem sucesso, e visita à governadoria, onde não é recebido. Sua invisibilidade é tamanha que mesmo o ato desesperado dele não provoca, não perturba, nem comove, senão o público. 

Enquanto isso, a contação da história é burocrática. Lofty Nathan, cineasta egípcio, filmando na Tunísia, adota a fotografia característica que acompanha o protagonista de forma bem próxima, em uma linguagem direta, sem floreios. O diretor se limita a contrastar a água (um símbolo de dignidade e liberdade) com o fogo, enquanto utiliza uma narração in off que tenta procurar um propósito otimista na ação de Ali e uma trilha sonora intrusiva, que apenas distrai a atenção do poder das imagens. 

É o tipo de história necessária porque revela a realidade de pessoas privadas do mínimo existencial e da dignidade, mas bem que poderia ser contada de forma menos trivial. 

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Top Gun: Maverick (2022), de Joseph Kosinski

O cinema de ação tem evoluído em direções contrárias: se os efeitos visuais computadorizados têm permitido uma liberdade criativa sem que os riscos do ofício (vide Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis), há quem prefira o bom e velho stunt, realizado de forma prática. Esta abordagem proporciona, ao menos na teoria, o maior realismo na execução e, consequentemente, maior imersão do espectador dentro da narrativa, e quem está na ponta disso, em se tratando de cinema americano, é Tom Cruise. Afinal, o que o espectador deseja em filmes de ação senão set pieces elaborados, convincentes e bem executados, que atingem (ou ultrapassam) o limite do possível? E Top Gun: Maverick, continuação 36 anos depois do clássico de 1986, alcança a marca com louvor. 

O roteiro escrito por Ehren Kruger, re-escrito por Eric Warren Singer e re-re-escrito por Christopher McQuarrie, roteirista vencedor do Oscar por Os Suspeitos e diretor de Jack Reacher e os últimos filmes da série Missão: Impossível, reencontra Maverick (Tom Cruise) explorando os limites da velocidade em um programa aéreo que perdeu o orçamento para o programa de drones. Encarando a obsolescência, Maverick recebe o convite de Iceman (Val Kilmer) para retornar ao Top Gun e treinar pilotos em uma missão contra uma nação inominada que está construindo uma fábrica de refinamento de urânio clandestino. Um destes pilotos é Rooster (Miles Teller), filho de Goose, cuja morte Maverick carrega nos ombros. 

A trama de Top Gun: Maverick é uma desculpa para colocar os personagens dentro de caças e executar cenas de ação impressionantes, e nada além disto. Já começa com o fato de que não são citados o nome da nação ou organização criminosa vilã, em que parte do planeta estão, nem mesmo são mostrados os rostos dos pilotos adversários. O inimigo genérico permite que a narrativa ignore qualquer tecido político ou irrite censores de países estrangeiros – a exemplo da China. Daqui a 10, 20, 30 anos, este aspecto não terá envelhecido e, quando não, apontará para o fato de como as forças armadas americanas desumanizam os adversários geopolíticos a ponto de privar-lhes, até mesmo, de uma nacionalidade ou de um rosto. 

Na terra firme, Top Gun: Maverick é um misto de embaraço e nostalgia, característica deste tipo de sequência legado (legacy sequel), colocando aparência madura no pano de fundo oitentista, em que Maverick escapa pela janela do quarto de Penny (Jennifer Connelly) e em que a equipe joga futebol na praia, no contraluz do por do sol sépia. Val Kilmer retorna ciente das limitações de fala que tem enfrentado (relatos no documentário Val) e a memória do clássico é introduzida em momentos-chave. Já Top Gun continua do mesmo jeito, com pilotos competitivos que pensam primeiro nos próprios recordes do que na coletividade e o drama central frouxo em que Maverick precisa deixar para lá o sentimento de culpa pela morte de Goose. 

A terra é apenas desculpa antes de os pilotos ganharem asas, e as cenas aéreas de Top Gun: Maverick impressionam pela ousadia não apenas de Tom Cruise, mas do elenco que comprou o projeto e aprendeu, ao menos o básico, a pilotar aviões. Assistir aos treinos e combates, cientes de que ali estavam atores, não dublês, dentro do cockpit e não de um simulador, soma mais uma camada de realismo ao cinema de ação e deságua na impressionante cena final que é de cair o queixo MESMO. E, por mais que saibamos que os atores não estão em 10 G, nem pilotando na velocidade máxima, a presença deles capturada por um sistema de múltiplas câmeras no interior do cockpit oferece uma experiência rara e que será ainda mais rara com a evolução do cinema de ação no CGI. 

A fotografia respira nostalgia no sepia, a montagem confere continuidade em vez de retalhar a ação e a trilha sonora continua com o mesmo impacto que antes tinha. Talvez os 15 minutos finais exibam uma covardia narrativa inexistente no desprendimento de Tom Cruise, que pode trabalhar Maverick bem além do piloto arrogante do original. Além de sentirmos o medo do fim – comentado pelo ator na entrevista dada em Cannes -, há também a indispensável necessidade de passagem de bastão para a próxima geração em uma atuação que mescla adrenalina, bom humor e emoção. A dois meses de completar 60 anos, Tom Cruise demonstra ter aprendido a importância de ser professor, e se sabemos que o ator não deverá continuar correndo como corre por muito tempo, ao menos podemos ter certeza de que dentro do cockpit a idade conta menos do que a coragem.

https://www.cinechronicle.com/wp-content/uploads/2022/03/Tom-Cuise-Top-Gun-Maverick.jpg

Armageddon Time (2022), de James Gray

A década de 80 é um momento de transformação profunda na sociedade norte-americana. Após o êxito dos movimentos hippie, da segunda onda feminista, de libertação sexual e de direitos civis, Ronald Reagan vinha como a força conservadora para frear as mudanças na sociedade e afirmar o poder do mercado antes do indivíduo. É um período de tensões que refletem até os dias atuais e cujas nuances uma criança de 10 anos não teria a tenacidade necessária para perceber. 

Escrito e dirigido por James Gray (Amantes, Ad Astra, Era uma Vez em Nova York), o roteiro é de um coming of age, retratando o amadurecimento e a perda da inocência de Paul (Banks Repeta). Ele é uma criança rebelde, que atenta contra a hierarquia dentro de casa e da sala de aula, além de apresentar dificuldade de aprendizado ou desinteresse como consequência de um ensino padronizado e não inclusivo. No recomeço das aulas, Paul conhece Johnny (Jaylin Webb), uma criança negra que mudou de escola resultado do processo de integração escolar. Os dois começam uma amizade desprovida de preconceito e movida pelo sonho de irem para shows que não irão e de serem o que desejam ser (artista e astronauta). São ingênuos, sim, mas por um momento, felizes também. 

Dentro de casa, Paul tem uma relação especial com o avô, interpretado por Anthony Hopkins, em uma das mais doces atuações de sua carreira. Aaron sobreviveu a perseguição nazista e conservou ensinamentos e histórias que repassa ao neto com o desejo de que este se torne melhor. Esther (Anne Hathaway) e Irving (Jeremy Strong, que tem um momento bárbaro no interior do carro) amam Paul, embora não saibam como lidar com um garoto cuja inteligência não é determinada pela nota de matemática. A ideia de êxito dentro da sociedade americana é desafiada por James Gray ao comparar escolas pública e privada e o discurso dentro de cada uma delas; a formação de uma elite que ditará os rumos da nação contrasta com a empatia que se espera de um artista. 

Ao mesmo tempo, o diretor expõe a hipocrisia da classe média suburbana que critica a eleição de Reagan, mas toma atitudes coerentes com as que este tomaria. É uma irresignação de sofá, com a lição torpe dada por Irving ao filho em certo momento ou o apagamento de Esther, cuja posição de liderança no grupo de pais e alunos é apenas cortina de fumaça para uma mulher insegura. Neste contexto, James Gray ainda critica os dois pesos e duas medidas da polícia norte-americana, e também explora o covarde egoísmo de quem somente pensa no próprio umbigo. 

E, como esperado, James Gray também explora a linguagem dentro de uma narrativa que é, aparentemente, direta: em certo momento, enquadra Jimmy e Paul detrás de grades escolares que mostram como estão presos desde crianças ao que a sociedade espera deles. Só que, em um momento específico na fala de Paul, o diretor opta por focalizar apenas nele, e assim borra as grades que o prendiam, na prova de que, para um jovem branco da elite, as grades podem desaparecer se este agir como esperam que aja. Noutro momento, Paul é enquadrado à frente de três máquinas de computador, no vão que separa 1 de 2, como se o destino dele não fosse ser artista, mas máquina dentro da sociedade. 

Detrás da candura da idade e do aparente descompromisso com a seriedade atrelado à ingenuidade, Armageddon Time se revela uma obra bastante madura sobre uma sociedade que, em razão do medo de amadurecer, prefere esquecer o passado e repetir os mesmos padrões de comportamento que privilegiam uns poucos e prejudicam tantos mais. 

ARMAGEDDON TIME - Festival de Cannes 2022

EO (2022), de Jerzy Skolimowski

Aos 84 anos de idade, o polonês Jerzy Skolimowski navega na tendência de Gunda ou Cow, documentários que tinham como protagonista animais de fazenda. Em EO, o personagem-título é um burrinho de circo que, em razão do protesto de grupos de proteção dos animais contra a crueldade animal, acaba sendo separado de sua treinadora ou tutora para ser abandonado à errância do mundo. A opção de ser um burro é interessante porque é o primeiro animal híbrido criado artificialmente pelo homem, então, de certa maneira, a própria existência do burro é fruto do homem brincando de deus e violentando a natureza. 

Não há muito a ser dito sobre a jornada de EO, um tanto quanto abstrata: ele assiste aos cavalos em uma fazenda serem bem tratados (sugerindo aí uma crítica social ao tratamento despendido a quem está na margem), depois surge em uma fazenda de burros, reencontra a treinadora etc. A narrativa desapega-se da causalidade e continuidade narrativa, em troca de uma experiência de percepção, em que a onipresença do animal sugere a característica de espectador, vítima e até algoz humano. 

Menos satisfatório é como Jerzy discursa de modo incoerente: em certo momento, um cachorro robô caminha e encara a própria existência no reflexo de uma poça d’água. Tal como o burro, é a criação do humano, mas afora isto, não há muito que relacione ambos e nem justifique a cor néon vermelha que se torna elemento recorrente dentro da narrativa. O roteiro também encaixa subtramas humanas ao reboque de EO: a treinadora é abandonada pelo namorado, um jovem retorna ao lar, hooligans destroem uma festa, um veterinário extermina animais. 


Pode ser que tenha sido o horário (22:15) ou o fato de já haver visto 4 filmes, mas EO não me proporcionou a consciência animal que defende, muito menos alguma coerência ou lógica em suas abstrações cinematográfica.

EO - Festival de Cannes 2022

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