Long Day’s Journey Into Night, Estados Unidos, 1962. Direção: Sidney Lumet. Roteiro: Eugene O’Neil. Elenco: Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards, Dean Stockwell e Jeanne Barr. Duração: 174 minutos.
Enquanto muitos diretores atravessaram a carreira pelejando uma cruzada vaidosa na busca de formas de expressão singulares que assegurassem a individualidade e autoria incontestável de seus trabalhos na história do cinema, Sidney Lumet seguiu uma direção mais altruísta, generosa e humilde. Infelizmente, esta estrada viria a ser acidentada pois, na medida em que seus colegas se beneficiavam de imprimir a sua assinatura nas obras cinematográficas, Lumet amargou uma falta de reconhecimento e prestígio dolorosas, mesmo que o seu acervo artístico seja dos mais férteis e diversificados que já me deparei. Filmes como Serpico, Um Dia de Cão, 12 Homens e uma Sentença, Rede de Intrigas, Equus e O Veredito são tão diferentes entre si em conteúdo, estilo e linguagem que um desavisado mal saberia se tratar do mesmo autor. Assim também ocorre com Longa Jornada Noite Adentro, ótima adaptação do texto teatral de Eugene O’Neil pelas mãos deste fascinante diretor.
Ambientado na isolada propriedade da família Tyrone no curso de um único dia, o texto literário base disseca as relação familiares entre o pai James (Richardson), bem-sucedido ator de matinés de outrora, a sua esposa Mary (Hepburn) e os seus dois filhos, Jamie (Robards) e o caçula Edmund (Stockwell). A princípio, as interações transcorrem cordial e superficialmente: na varanda, Mary alfineta o ronco do marido que retruca açoitando docemente a sua vaidade, ao passo que no interior da mansão, escutam-se os risos de Jamie e Edmund caçoando do incidente envolvendo porcos e a piscina de um rico vizinho. Porém, impelidos a discutir assuntos desagradáveis, sobretudo a tuberculose do caçula a qual Mary insiste ser somente um resfriado, acompanhamos paulatinamente a exumação de esqueletos do passado daquela família e a degradação (ou estreitamento, muitos diriam) dos laços que os unem.
Para compreender esta família, Sidney Lumet lança luz individualmente nos vértices que a compõem e através de acusações e discussões e confissões, montamos um panorama complexo sobre a trajetória de cada membro em particular. Tome James: magoado por não ter logrado êxito em se desvencilhar do sucesso das matinés, o ator jamais pôs à prova seu real talento artístico sequer podendo ter interpretado um texto do seu adorado Shakespeare; isto o tornou um homem distante cujo sonho dissipado tem sido empurrado para o primogênito beberrão. Preocupado também com o bem-estar do filho e esposa (mais dela adiante), James ainda deve equilibrar as economias da casa, o que o conduz à avareza (o uísque é racionado), embora aquisições supérfluas sejam sistematicamente realizadas com amigos ricos apenas para estar no ápice da sociedade. O que não o faz mau, apenas alguém fraco conforme a voz trêmula e patente insegurança de Ralph Richardson sugerem.
Por sua vez, embora haja terreno a explorar sobre Jamie e Edmund, e o seu ateísmo é personificado na adoração de autores do quilate de Baudelaire, Oscar Wilde ou Schopenhauer e confronta violentamente o catolicismo tradicionalista do pai, é Mary a personagem mais instigante. Depressiva, instável, bipolar e dividida entre o afeto e a culpa em relação ao mimado caçula, a matriarca aflige marido e filhos nas idas mais frequentes a um quarto isolado levada por razões intensas e desconhecidas (ao menos de boa parte da narrativa), e a mudança no timbre e o nervosismo explicitam quão séria é a preocupação. Vivida pela lendária Katharine Hepburn, a atriz impõe um tom inquieto em risos envergonhados que sequer chegam a desenhar a amplitude completa e no olhar alarmado acompanhado da fala aturdida e insegura.
Sob as ótimas atuações está um texto rico e contundente materializado em diálogos perfumados e literários, mas, por mais primorosos que fossem, provavelmente não resistiriam às críticas habituais sobre adaptações de peças teatrais (leia-se: a verbalização excessiva, o ritmo maçante, a geografia limitada). Bobagem! Nas mãos de Sidney Lumet a narrativa de quase 3 horas ganha um ritmo fluido onde cada novo diálogo parece desferir um intenso golpe no interlocutor, e permitem que estes se tornem memoráveis duelos de mágoas acumuladas, porém infundidas no carinho e respeito familiar. Mais, mestre na linguagem cinematográfica, o cineasta elabora uma cuidadosa mise en scène (uma de suas especialidade), como durante a sequência que antecede o almoço e exigiria um videocast apenas para explicá-la. Tentarei, porém, fazê-lo em palavras.
A princípio, James está no centro da tela e em primeiro plano argumentando com propriedade sobre a conduta de seus filhos que estão, ambos, no segundo plano em posições opostas. James, portanto, é o vértice daquele triângulo em posição de destaque. Mas, eis que surge em cena Mary, no ponto de fuga e, portanto, conquistando a atenção do espectador. Ela veementemente o acuso de levar a família àquela situação delicada e, a cada novo argumento ou evento pretérito, James recua um novo passo perdendo a proeminente presença que anteriormente possuía. Ao final, ele está encolhido no canto esquerdo da tela, cuja nova configuração dos personagens é um quadrado, culminando no close de seu rosto assombrado e a inferiorização subsequente assentando-se na poltrona derrotado.
Assim, mesmo que a mansão dos Tyrone não seja necessariamente a prisão dramaticamente anunciada por Mary, tampouco era o lar amoroso que aqueles membros mereciam conviver. E, o nevoeiro que os esconde do mundo e esconde o mundo deles ainda encobre segredos do passado e embaça sentimentos e nenhum novo dia certamente será igual a esta Longa Jornada Noite Adentro.
P.S.: Se estiver interessado em alguns dos diálogos presentes no texto teatral, treine seu inglês aqui.
Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “Longa Jornada Noite Adentro”
Quero uito assistir a esse filme e devo dizer que o seu texto me instigou muito!
Obrigado 🙂
Esta é uma das obras do Lumet que eu não conhecia. Acho-o um gênio, mas tenho que aprofundar mais em sua carreira. Coincidentemente, assisti recentemente o genial Rede de Intrigas. Enfim, com certeza vou ir atrás de Longa Jornada Noite Adentro!
Lumet era gênio mesmo. De múltiplas caras, estilos, formatos e gêneros. O que o faz um gênio totalmente diferente de Scorsese ou Allen, por exemplo.