Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Vício Maldito

Days of Wine and Roses, Estados Unidos, 1962. Direção: Blake Edwards. Roteiro: J. P. Miller. Elenco: Jack Lemmon, Lee Remick, Charles Bickford, Jack Klugman, Alan Hewitt, Tom Palmer, Debbie Megowan, Maxime Stuart e Jack Albertson. Duração: 117 minutos.


O idealismo tem o revés de fincar pés no duro cimento do mundo real. Esta constatação está implícita na recente trajetória do relações públicas Joe Clay: ao invés de vender a retocada imagem de poderosos empresários e políticos, ele age como um cafetão, um autointitulado eunuco no harém, agenciando encontros às escondidas entre aqueles homens e garotas de programa, trabalho conduzido com muita seriedade, apesar de machucar irremediavelmente o seu amor próprio. Ainda assim, Joe ama e acredita romanticamente na sua profissão e busca uma mudança de ares que o leva a concretizar a visão que possui de si. Mas, no meio do caminho, existe uma pedra de tropeço, ou melhor, uma garrafa de uísque que, associada a obrigatórios encontros sociais, o conduz à inevitável derrocada ruma ao vício.

Antes disso acontecer, porém, Joe conhecera Kristen Arnesen, uma ingênua secretária acidentalmente tomada por uma das garotas de programa de um passeio de barco. Ofendida com a confusão, a jovem acaba cedendo aos galanteios de Joe depois de repentina mudança de atitude só existente no cinema. Anos depois, os dois se casam, têm uma filha, Debbie, e parecem viver o sonho americano. até que o álcool começa a se introduzir na vida conjugal, primeiro na forma do Brandy Alexander, valendo-se do vício de Kristen por chocolate, e depois nos cada vez mais comuns porres motivados pela desgastante rotina e o precoce nascimento da filha. Certa noite, inclusive, Kristen causa o incêndio do apartamento do casal, visto corriqueira e passageiramente na narrativa.

Narrativas envolvendo o alcoolismo, como esta de Vício Maldito, não fogem muito à regra de encarar a depreciação do ser humano em função do embaraço e arrependimento provocado pelo vício. E sua ínfima recompensa repousa longe do alcance do espectador e atravessa obrigatoriamente a trajetória da degradação moral e física, o vexatório e doloroso retrato da frágil condição humana. Não há prazer em acompanhar este retrato, mas Jack Lemmon e Lee Remick, indicados ao Oscar, trazem muita dignidade a seus difíceis personagens, acendendo a fagulha no público que nos leva a ansiar pelo restabelecimento da sobriedade e paz familiar.

Dirigido por Blake Edwards, antes da colaboração com Peter Sellers na série da Pantera Cor-de-Rosa, a primeira metade da narrativa não economiza no humor, o que se afigura na persona cinematográfica de Jack Lemmon, brincando com o esteriótipo cômico do bêbado, esbarrando em portas de vidro, fazendo caretas e risos despropositados e cambaleando seus passos até o raiar da ressaca do dia seguinte. Este leve ínterim é importantíssimo para contrapor à imagem caricata e, portanto, incapaz de suscitar pesar no público, com a faceta mais humilhante do alcoolismo encarada por Joe no seu reflexo no espelho. Neste sentido, Blake Edwards saí-se admiravelmente bem ao transformar um chuveiro em um elemento de horror e a deprimente busca de uma garrafa na estufa no momento mais trágicos da narrativa. E se atualmente, ser reputado de alcoólatra tem uma conotação negativa, quiça há 50 anos onde isto era tão vexatório quanto destruir uma família. 
Contudo, mesmo que acerte substancialmente no retrato do alcoolismo, Blake Edwards não economiza no melodrama. Há muito choro, e o digno Charles Bickford, intérprete do pai de Kristen, protagoniza uma sequência tocante que acerta justamente pelo minimalismo e retração daquele homem duro. Nesse sentido, a palavra amor começa a ser invocada a cada novo embaraçoso diálogo (“eu pensei que amor era amor“, “se você a ama, dê exemplo“) e o sentimento de responsabilidade de Joe por ter iniciado Kristen na bebida e seu ressentimento paternal é martelado insistentemente pelo cineasta. Nem adianta o pacto de sobriedade do casal se já sabemos que este será dispensado quando os dois pareceriam seguir o caminho da felicidade.

Assim, Vício Maldito funciona mais como mensagem de alerta e propaganda dos alcoólicos anônimos agraciada por ótimos intérpretes, embora tenha um plano final pertinente e épico, onde aquele idealista e promissor jovem, agora um adulto calejado, é confrontando com a imagem mais assustadora para um viciado: o múltiplo-retrato que representa a vergonha do seu pecado, o medo da recaída e o desejo de se entregar sem amarras ao vício.

Independentemente de qual caminho Joe seguirá, nosso contato com aquele casal não poderia ser mais amargo.

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, Mamma Roma.

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