Partindo desse ponto de vista, 007 pode ser considerado o típico herói americano comum que luta para manter o mundo em equilíbrio e tenta adiar possíveis guerras, no momento em que as tramas de espionagem começam a ganhar mais pertinência. Entretanto, no decorrer da narrativa, somos apresentados a um espião bem mais complexo do que uma mera figura heroica e, com isso, muito mais fascinante.
Baseando-se no personagem de Ian Fleming, o roteiro escrito por Richard Maibaum (que voltaria a emprestar seu talento a dois dos melhores filmes da franquia), Johanna Harwood e Berkely Mather explora o agente 007, James Bond, que depois de ter ficado afastado vários meses do serviço britânico recebe sua nova missão: investigar o desaparecimento de outro agente.
Conseguindo estabelecer elementos que se tornariam as maiores referências de seu protagonista nos anos seguintes (o tiro em direção à câmera e o tipo de bebida), o diretor Terence Young é extremamente eficiente na condução de sua narrativa – mantendo uma veia investigativa invejável no primeiro ato – e na apresentação de seus personagens. Basta observar, por exemplo, a primeira aparição de 007: note como ele já aparece em um clube, num jogo de cartas e tentando impressionar uma bela mulher com sua desenvoltura; além disso, o diretor, antes de mostrá-lo, desloca a câmera para trás do agente, como se estivéssemos vendo de seu ponto de vista cada movimento de seus adversários. Sem deixar de ressaltar que a primeira frase e aparição de seu personagem é sua mais famosa: “Meu nome é Bond. James Bond”.
Young também é preciso ao balancear a leveza e o sarcasmo com outros momentos de pura tensão. Assim, ao mesmo tempo em que temos o agente criando mecanismos para perceber se está sendo seguido e depois achando graça no fato, também temos momentos intensos em que o olhar de Bond corresponde ao momento perigoso e temível que se encontra – neste contexto, a cena da aranha percorrendo o corpo do agente se torna a mais impressionante do longa-metragem.
Como se não fosse o bastante, o roteiro também tem momentos brilhantes ao desenvolver suas ações de forma verossímil e complementar as escolhas visuais de Young. Deste modo, principalmente o primeiro e segundo ato são impecáveis ao construir elementos que evidenciam particularidades do personagem sem soar didático ou expositivo demais: observe como M fala de maneira natural que o agente se encontrava afastado por sua arma ter falhado ou quando certo personagem diz que o outro luta contra crocodilos apenas para depois 007 bater nele e comprovar sua força e habilidade. Igualmente curiosa é a cena em que Dr. No tenta deixar o agente à vontade e para isso o coloca com vestimentas que destoa completamente do que o agente usava até então (aproximando-se mais do que o próprio vilão costumava usar); note, neste momento, como o doutor demonstra que tem várias pessoas ligadas a ele apenas ao servir 007 com sua bebida favorita e deixar ressaltado que conhece tudo de seus inimigos. Nesta linha de raciocínio, o roteiro também se revela admirável na cena da troca de armas – quando 007 prontamente substitui sua Beretta por um Walther PPK 7.65mm ao ouvir a requisição de seu chefe.
Todavia, é Sean Connery que surge como um dos pontos mais fortes do filme. Mantendo uma aparência imaculável desde sua primeira aparição, momento em que aparece com as unhas bem feitas e uma elegância ímpar na condução do jogo de cartas, o ator consegue alternar perfeitamente o humor/ação sem nunca parecer forçado: isto é, se em uma situação Connery consegue transmitir tensão numa perseguição de carros; noutro, o timing do ator é implacável, como quando diz que adoraria levar Monepenny para jantar, mas M o colocaria em corte marcial por uso ilegal de propriedade do governo. O ator, ainda, é preciso não apenas na maneira calculada que impõe sua voz (intercalando charme e frieza), mas também em cada movimento de seu corpo, uma precisão quase cirúrgica.
Conseguindo estabelecer pontos cruciais na trama, demonstrar particularidades de Bond e apresentar cenas memoráveis, como a de Ursula saindo do mar, o primeiro filme de 007 consegue render uma base sólida para projetos futuros e traz alguns dos melhores fatores que imortalizaram James Bond. Embora Dr. No esteja longe de ser o melhor filme do agente nos cinema, certamente, é competente o suficiente para estabelecer esses elementos que ocasionariam nos melhores exemplares da franquia (Moscou contra 007 e 007 à Serviço de sua Majestade).
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Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, visitaremos o cinema japonês com Harakiri, de Masaki Kobayashi, e A Rotina tem Seu Encanto, de Yasujirô Ozu, além de visitar a Grécia e o mito de Electra, de Mihalis Kakogiannis.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.