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50 Anos | O Sol é para Todos

To Kill a Mockingbird, Estados Unidos, 1962. Direção: Robert Mulligan. Roteiro: Horton Foote baseado no livro de Harper Lee. Elenco: Gregory Peck, John Megna, James Anderson, Robert Duvall, Brock Peters, Mary Badhma, Phillip Alford, Collin Wilcox, Paul Fix. Duração: 129 minutos.

por Júlio Pereira


Enraizado na cultura americana, bem como em todo o mundo, o racismo – muito presente até hoje, ainda que de forma velada – é um dos temas mais interessantes já explorados cinematograficamente. Poucas vezes, no entanto, de forma tão arrebatadora quanto em O Sol é Para Todos. Numa época em que se considera corajoso um engodo como Histórias Cruzadas e a questão das cotas raciais está em voga, este clássico nos lembra de que possuímos uma dívida secular com a nação negra na América. Como exemplo, por épocas em que se matavam negros por, simplesmente, serem negros.

Advogado de renome, Atticus Finch (Gregory Peck) é convocado pelo xerife da cidade de Macomb, no Alabama, para defender o caso de Tom Robinson (Brock Peters), acusado de estuprar Mayella Violet Ewell (Collin Wilcox Paxton). O pai da moça, enfurecido com a suposta agressão à sua filha, faz de tudo para acabar com a vida do rapaz, dentro e fora dos tribunais, enquanto Finch defende veemente a visão de Robinson, mesmo que isso lhe angarie o ódio por muitos.

Na pele de Atticus, Peck é meticuloso ao compor um personagem absolutamente íntegro, com um olhar sempre atencioso e compreensivo. Jamais oprime os filhos, apenas os repreende quando necessário – e, mesmo assim, delicadamente. Preocupado pela perda da esposa, veste sempre a figura do pai-professor, ensinando-lhes valores importantes (“Você nunca entende realmente uma pessoa… até ver as coisas do seu ponto de vista. Até estar na sua pele e sentir o que ela sente.”) e remendando – serenamente, vale frisar – sua filha por um ato irracional de racismo. Sua natureza racional e, ao mesmo tempo, passional, o leva a tentar poupar seus filhos das coisas ruins do mundo, impede-o de cometer um assassinato de um cachorro sem tirar seus óculos – como se tivesse que mudar, momentaneamente, sua personalidade -, ou apelar para a violência física ao receber uma cuspida no rosto. Além de todas as qualidades, o personagem é admirável por persistir com sua causa enquanto todos o hostilizam.

Um verdadeiro herói, Atticus Finch discursa eloquentemente a favor dos oprimidos nos tribunais. E seu discurso antirracismo nos impossibilita de pensar em qualquer outro adjetivo senão formidável ao nos referirmos ao personagem. Seus levantamentos acerca do caso são inteligentes porque evocam pensamentos muito mais ao espectador do que ao próprio júri, como a ideia do pai batendo na filha. Absolutamente honesta, a sequência do tribunal passa a impressão de ser imparcial por uma ausência de elipses, mostrando todos os seus integrantes e, portanto, os diversos depoimentos e pontos de vistas. Com exceção da ausência da defesa feita pelo advogado de Mayella, dando-se vez apenas a Atticus – uma “licença artística”, no mínimo, nobre. Diante do júri, Tom Robinson tem uma compostura muito mais honesta e humilde, consolidada pela forte atuação de Brock Peters, que se defende com confiança irrefutável. O ator, inclusive, chorou de verdade durante a cena do testemunho – algo que não foi ensaiado. Já Paxton, ao conferir histeria à Mayella, somada à evasão de suas palavras, retira muito da credibilidade da sua personagem. Tendemos, portanto, a pesar para o lado do acusado. Marcada por uma mise en scène maravilhosa, a cena de seu depoimento é uma das mais fortes: enquanto Atticus se aproxima da suposta vítima, oprimindo-a com sua presença, ela fica claramente mais nervosa do que o usual.

Em O Sol é Para Todos, entretanto, são as crianças donas dos holofotes. Pincelando um retrato verossímil da infância, o roteiro de Horton Foote, adaptado do romance de Harper Lee (vencedor do Pulitzer de 1960), insere elementos comuns deste período da vida, como a vizinha chata e traquinagens, feito invadir o gramado do vizinho misterioso. São os “pequenos” as soluções de inúmeros problemas. A filha de Atticus, por exemplo, salva a “pátria” em certo momento, apelando para o emocional dos marmanjos. Na relação de extrema confiança entre os irmãos Scout (Mary Badham) e Jem (Philip Alford), o garoto exerce também o papel da figura paterna, defendendo a irmã e dando sermões quando necessário (após uma briga, por exemplo). Badham e Alford são dois dos atores mirins mais incríveis já vistos, sendo que aquela se destaca por interpretar uma personagem explosiva e temperamental, o que exige bastante talento.

É também nas crianças que residem as esperanças de um mundo melhor. Isentos de preconceitos, não encontram dificuldades em socializar-se entre brancos e negros, como a belíssima cena do “encontro” no carro nos comprova. Mesmo quando Scout diz “negros desprezíveis”, o faz por estar com raiva do garoto pela briga que tiveram. Nesse sentido, Boo (Robert Duvall) é um personagem-metáfora perfeito. O rapaz, de bom caráter, inclusive entregando presentes aos filhos de Atticus e devolvendo a calça de Jem, é julgado pela vizinhança como perigoso e quase uma aberração, enquanto as crianças desaprovam a atitude do pai em prendê-lo – e o julgam, por isso, como uma pessoa má. Ironia do filme, é Boo, a representação dos oprimidos, quem salva os irmãos no fim. Ele é, finalmente, aceito – ao menos por alguns.

Fortalecido pelos seus belos enquadramentos, o trabalho de Robert Mulligan na direção ressalta a importância dada às crianças na obra. A sequência em que a sombra na parede sugere algo extremamente perigoso, por exemplo, simboliza muito bem o poder do imaginário infantil. Os adultos, por sua vez, são vistos como figuras opressivas pela câmera mantida à altura dos personagens infantis, como na cena da “gangue”. E, no clímax, os rostos dos personagens adultos jamais são exibidos, reforçando o clima de mistério e a importância da visão das crianças. Consegue, também, com eficiência, construir o retrato duma época em que era absurdo acreditar mais num branco que num negro, muito menos imaginar uma branca desejar sexualmente um negro! Não obstante, há também um breve, mas belo, debate sobre a pobreza de certas famílias; uma, em especial, ajudada por Atticus, que encontra sua representação máxima na linda cena em que um pobre garoto coloca molho em demasia no seu prato, indicando que aquela refeição é única e rara.

O Sol é Para Todos, o sensacional título brasileiro, indica bem o que é o filme: uma grande obra-prima antirracista, fortalecida por belíssimas cenas (os negros lamentando no tribunal; o carinho de Boo em Jem), que prima pelo humanismo e otimismo.

Publicação gentilmente produzida por Júlio Pereira, autor e editor do blog Lumi 7.
Visite em http://www.lumi7.com.br/

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, visitaremos o clássico de Michelangelo Antonioni, O Eclipse, e o surrealismo de Luís Buñuel em O Anjo Exterminador.

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5 comentários em “50 Anos | O Sol é para Todos”

  1. É um texto necessário esse o teu, desnuda bem todos os elementos importantes deste filme que cumpre com sua crítica ao preconceito, à humanidade firmada em erros e à celebração do olhar da inocência do "tempo da criança". Um texto forte, sob o olhar de uma menina, nada mais poético. Um clássico atemporal e gostei da forma como você não se prendeu somente ao contexto narrativo, mas como foi promovendo uma reflexão pessoal em cima de tudo. Gosto mais de críticas assim, afinal filmes em seu intuito mais primário, hão de exercer o peso da reflexão em cada pessoa. Este aqui é fundamental, de fato. Abração

  2. Essa obra-prima revela bem o talento de Gregory Peck e o racismo velado de uma sociedade. Tão maravilhoso quanto o livro. Adorei a resenha.
    Abraços!

  3. É um filme atemporal. Principalmente enquanto existir no mundo, qualquer tipo de preconceito contra qualquer ser humano.

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