Cega e surda desde o berço em decorrência de uma doença mal curada, a menina Helen Keller poderia ser ignorada pela sua família caso os seus braços enrijecidos para tatear o desconhecido não provocassem acidentes materiais frequentes ou colocassem em risco a vida da irmã caçula. Interná-la em uma instituição é a solução sugerida pelo irmão mais velho; mas não é o que pensa a sua desesperada mãe, recorrendo aos melhores especialistas nos Estados Unidos do século XIX para descobrir uma cura para a condição da filha. Esperança prestes a se extinguir até a chegada de Anne Sullivan, encaminhada pela universidade de Perkins para ensinar Helen a se comunicar. Jovem de 20 anos, inexperiente e ex-deficiente visual (os óculos escuros são acessórios permanentes em razão da fotofobia), Anne é desacreditada pela família, pouco convencida da eficácia dos métodos nada ortodoxos empregados.
Porém, ainda mais difícil do que a tarefa de superar a resistência e o preconceito é a de vencer a frustração de uma garota inteligente que nunca foi apresentada às ferramentas de comunicação. Pior, cujo desejo foi inconscientemente desprezado por seus familiares, acostumados a mimá-la ao aceitar sem objeção o seu comportamento grosseiro e animalesco apenas para não ter que lidar com a realidade. Assim, os melhores momentos da narrativa dirigida por Arthur Penn são aqueles em que Anne, sem piedade, confronta Helen, compreensivelmente descontrolada e enfurecida por não compreender a linguagem de sinais e a ideia de que os objetos ao seu redor podem ser identificados com apenas alguns gestos manuais. Dessa forma, a sequência que se passa na sala de jantar, na qual Anne tenta ensinar bons modos a Helen é uma das mais inquietantes que eu já vi… na vida inteira, e Arthur Penn não precisa de nenhuma intervenção afora a câmera paciente e a confiança nas suas atrizes para tornar este o momento mais célebre da narrativa.
Questionando o que inspirava tanta dedicação por parte de Anne, Arthur Penn revela em breves insights os traumas do passado da tutora sem, contudo, aprofundar-se neles para não perder o foco da narrativa. Além disso, ao invés de se distanciar confortavelmente e criar uma obra analítica e fria como François Truffaut fizera em O Garoto Selvagem (bastante similar a este filme nas tentativas do Dr. Itard em ensinar um jovem encontrado na floresta a se comunicar), Arthur Penn exige maior comprometimento emocional do espectador, inserido naquela família desde o primeiro grito de Kate ao descobrir que a sua filha não respondia a estímulos como um estalar de dedos.
Aí que entram os dois pilares que sustentam a narrativa: Anne Bancroft e Patty Duke. Esta, em um overacting corajoso que poderia facilmente ser alvo de críticas, mas que funciona graças a imersão completa da jovem atriz, na época das filmagens com 16 anos, embora interpretando uma criança com 7; em termos mais populares, ela não saí da personagem em nenhum momento sequer e o seu olhar perdido e expressividade facial jamais cedem à imagem da macaca treinada que James se refere em certo momento, e sim de uma garota curiosa e doce ainda que o seu agir súbito e exaltado permitisse deduzir diferente. Já Anne Bancroft constrói uma personagem obstinada em cumprir o seu objetivo de ensinar a linguagem de sinais, o que a leva a ser rígida, impertinente, paciente e amorosa conforme a situação exige, sem contudo afugentar o olhar intenso e atencioso que podemos espreitar mesmo detrás dos óculos escuros.
A bem da verdade, Helen Keller jamais seria curada e veria o sol como a sua mãe tanto sonhava, ela continuaria a esbarrar e derrubar objetos e a ameaçar a segurança de si própria e dos outros. Mas o milagre do título nacional e original não pode ser visto de forma reducionista, ele tem que ser aceito como aquilo que ele é: a história de uma jovem brilhante portadora de deficiência e que, contra todas as expectativas, viria a se tornar uma escritora e filosofa… conforme relatado em um de seus livros no qual se baseia este excelente O Milagre de Anne Sullivan.
P.S.: Anne Bancroft e Patty Duke venceram o Oscar de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante em 1963, respectivamente.
Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, a antepenúltima publicação com três obras do cinema norte-americano: Freud – Além da Alma, Vendedor de Ilusões e Doce Pássaro da Juventude.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
5 comentários em “50 Anos | O Milagre de Anne Sullivan”
Sempre ouvi falar do filme, porém, não tinha me atentado a força da história……
Anne Bancroft é realmente um pilar, em qualquer filme. Vou buscar o filme para o feriado.
Cara, estou há mil anos querendo assistir a esse filme. Sério mesmo, quero tanto vê-lo que chega a ser contraditório o porquê de eu ainda não o ter visto, sabendo que é tão fácil baixá-lo. Gosto do trabalho de Anne Bancroft e sempre ouvi muito bem sobre essa fita, e o seu texto apenas aumentou o meu desejo de conhecê-la.
Excelente texto, parabéns!
🙂
Ótimo texto, Marcio Sallem!
O filme foi para mim, como muitos outros, felizmente, uma grata e impressionante sessão de cinema.
Destaco, assim como você, a sequência da sala de jantar, onde a imponência das atuações de Bancroft e Duke são … sem palavras.
E sem palavras aqui estou, pois a película é realmente magnífica, e só assistindo para sentir toda a agressividade, desespero, um verdadeiro milagre. Milagre cinematográfico, pois o filme é muito bom, e milagre de vida, já que a história é verídica.
Sou estudante de libras, e conheci o filme pelas minhas pesquisas metodológicas, assisti-o, e repassei para minha sala, onde todos, inclusive alguns homens, se emocionaram, sorriram, e se encantaram com O Milagre de Anne Sullivan.
Ler a sua crítica me faz acreditar, cada vez mais, que o cinema sempre poderá impressionar seus espectadores.
Como tinha prometido, a mim mesmo, assisti ao filme.
Melhor do que eu esperava…..Tocante, profundo e apaixonante.
Atuações espetaculares. Aula……de vida.
Muito obrigado pela dica que me fez ter um feriado especial em termos de cinema.
Que bom que gostou. Realmente um filmaço 🙂