Na mitologia grega, Atlas foi o titã condenado por Zeus a sustentar os céus sobre os ombros por toda a eternidade. Para mim, não há dúvidas de que um feito semelhante foi concretizado pelo diretor alemão Tom Tkywer e pelos irmãos Wachowski na adaptação aos cinemas da obra homônima de David Mitchell, A Viagem. Ambicioso, ou pretensioso para muitos, a obra expande-se ao longo de meio milênio em seis histórias interconectadas por desígnios íntimos, detalhes, uns óbvios, outros pequeninos e quase insignificantes, ou somente por rostos perpetuados no decorrer dos séculos, no aspecto mais banal da narrativa, e curiosamente, aquele que mais chama a atenção do espectador.
Impressionando pela coesão e uniformidade da narrativa, sobretudo por tratar-se de um esforço colaborativo com equipes criativas distintas, uma dirigida pelos Wachowski, e a outra por Tykwer, A Viagem marca os pontos de partida de sua jornada cedo no prólogo, situando o espectador em diferentes épocas e gêneros narrativos. Há o cinema de época abolicionista em 1849, semelhante a Amistad, e o retrato de um genial mas problemático músico em 1936; um thriller jornalístico investigando uma corporação em meados dos anos 70 e uma comédia geriátrica ambientada em um lar para idosos nos tempos atuais; e também, uma ficção-científica passada no século XXII e um drama pós-apocalíptico com toques religiosos mais de 100 invernos após o evento chamado A Queda. Cada história tem o seu protagonista – respectivamente Sturgess, Wishaw, Berry, Broadbent, Bae e Hanks -, revolucionários que modificaram a ordem mundial, em maior ou menor grau, e estão conectados por um sinal de nascença na forma de cometa.
Satisfatório ainda que visto só como uma antologia de médias-metragens e cujos muitos pontos de interseção pouco ou mesmo nada interferem nas decisões feitas pelos personagens, a narrativa introduz objetos que superam a barreira do tempo (o livro escrito por Luisa Rey ou o botão de um casaco cujo brilho lembra o de uma constelação), cenários são revisitadas (o asilo onde Timothy Cavendish é internado pelo irmão é a mesma mansão do músico Vyvyan Ayrs, ambos interpretados por Broadbent) e inclusive frases adquirem novos contextos ao ser reproduzidas por interlocutores diferentes. Todavia, há bem mais debaixo desta simplória interpretação, e a transcendentalidade do espírito, o carma, vidas passadas e futuras rapidamente tornam-se chaves para solucionar o intrincado roteiro – uma interpretação que aceitei de olhos fechados nas primeiras vezes que assisti ao filme.
Assim, os personagens vividos por Tom Hanks, por exemplo, reproduziriam a evolução de um espírito mesquinho e traiçoeiro naquele capaz de sacrificar a sua crença em favor de uma raça chamada prescientes (e é interessante observar que certas características egoístas mantêm-se intactas ao longo dos séculos, como quando assiste covardemente a um parente ser morto). Não consigo mais aceitar essa interpretação, óbvia demais para meu gosto. Opto por outra em que a marca do cometa simboliza a perpetuação de um espírito reencarnado em diversas faces, não sendo em vão, portanto, que aqueles que a ostentam sejam homens cujas decisões os levaram a tornar-se heróis e até mártires de uma causa nobre (abolição da escravatura, a derrota da Unanimidade). Da mesma maneira, a estagnação de figuras como as interpretadas por Hugo Weaving e Hugh Grant representa a situação a ser vencida – a escravidão ou a opressão de uma corporação.
Com uma direção de arte e figurinos irrepreensíveis, uma ótima maquiagem – as vezes é difícil descobrir debaixo do látex quem é quem, sobretudo Hugh Grant, embora não haja comprometimento da expressividade dos atores -, e bons e orgânicos efeitos especiais, é a fotografia de Frank Griebe e John Toll que mais impressiona. Eles conferem um tom opressivo à Nova Seul enquanto abundantes sombras retratam a homossexualidade mantida em sigilo pelo músico Robert Frobisher ou cores dessaturadas setentistas ilustram com perfeição o tom investigativo jornalístico. Responsáveis por cenas belíssimas, como a de louças espatifando-se em câmera lenta, eles também criam sequências perturbadoras, como aquela que apresenta uma cruel espécie de reciclagem de cadáveres.
Enquanto isso, a montagem de Alexander Berner é um espetáculo a parte (foi um pecado ele não ter sido indicado a prêmios). Interconectando a narrativa em um todo coeso e fluido por meio de raccords visuais (cavalos cavalgando transformam-se em trilhos de trens), sonoros (após Sixsmith pedir ajuda, a ação corta para Cavendish enumerando o que precisa) ou uma combinação dos dois (Vou guiar você aos portões do diabo, afirma Zachry, para no instante seguinte o portão do asilo abrir-se para Cavendish), o montador confere a uniformidade exigida pela narrativa, criando também sequências gêmeas memoráveis, como a fuga sobre uma ponte futurista entrecortada com uma cena passada sobre o mastro do navio (inclusive os ângulos usados são os mesmos). Da mesma forma, a trilha sonora de Reinhold Heil, Johnny Klimek e Tom Tykwer revisita os tons do Sexteto Cloud Atlas com ligeiras variações soldando, definitivamente, uma história na outra.
Derrapando só em reaproveitar Tom Hanks e os demais em desnecessárias figurações que mais distraem do que acrescentam, A Viagem é uma surpreendente obra de arte que traduz, ao menos a meu ver, com perfeição a magia do cinema, em que todas os ofícios colaboram para criar uma história indivisível disfarçada em diversos rostos, filosófica com a sua mensagem esperançosa e espiritual, e perpétua como poucos filmes que já vi.
P.S.: parece existir um furo na lógica de que há apenas um espírito reencarnado em múltiplos personagens, já que Luisa Rey (Halle Berry) é contemporânea de Timothy Cavendish (Jim Broadbent), e ambos têm a marca do cometa na pele. Mas também quem sou eu para discutir as regras do pós-vida.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Crítica | A Viagem”
Márcio… eu preciso rever esse filme… Over and over again! Adorei sua crítica.
Certamente será um filme que irei rever o quanto puder. Adorei tanto que fiquei pensando nele vários dias e encontrando alguma coisa que me fizesse gostar menos. Lembrei de que em um momento um personagem diz que "tigres não podem mudar suas listras" e depois vemos o destino do personagem de Tom Hanks que vira um dos mocinhos. Claro, há um registro claro que diz: "nossas boas ações que definem nosso futuro", é isso, certo? Mas, fica meio conflitante essas duas sentenças se forem vistas de um panorama maior. Enfim, filmaço!