Hollywood é uma indústria bilionária, exportadora de uma das mais importantes commodities dos Estados Unidos: filmes. É natural que, igual a qualquer corporação que quer ver seu negócio prosperar, Hollywood invista na imagem, que deve estar irretocável, e está disposta a protegê-la de todas formas contra ameaças externas e internas, como fizera quando tornou Mel Gibson um pária depois de comentários antissemitas e racistas e agressões contra a ex-mulher Osanka mancharem a não tão limpa ficha corrida do ator e diretor. Tanto é verdade que, nos últimos 10 anos, o então rentável astro somente estrelou seis produções – inclusive submeteu-se à condição de vilão em Machete Mata e Os Mercenários 3, trabalhos que, desconfio, jamais aceitaria caso estivesse no auge – e não dirigiu nada desde Apocalpyto (2006). Mas a indústria ressente a ausência de Gibson, autor de obras memoráveis como Coração Valente e A Paixão de Cristo, e está disposta a levantar a bandeira branca com este Até o Último Homem, indicado a seis Oscar, dentre eles, melhor filme e diretor.
E a história real de Desmond Doss (Garfield) estava somente aguardando o fim do purgatório do cineasta, pois foi feita sob medida para que ele discutisse o messianismo e os preceitos religiosos cristãos, temas recorrentes na sua obra. A trama escrita por Robert Schenkkan (de O Americano Tranquilo) e Andrew Knight (de Promessas de Guerra) apresenta-nos Desmond, adventista, que na infância quase provocou a morte do irmão durante uma briga. Filho de pai alcoólatra, violento e calejado da primeira guerra mundial (Weaving, cuja atuação deveria haver sido lembrada nas premiações), o jovem amadureceu com o quinto mandamento gravado na cabeça em um adulto prestativo e gentil mas não alheio a sua obrigação patriotíca. Logo depois de a base de Pearl Harbor haver sido atacada pelos japoneses, Desmond filia-se ao exército, e, de certa forma inspirado pela enfermeira Dorothy (Palmer), por quem se apaixona, deseja exercer a função de médico e salvar vidas. Entretanto, por ser objetor de consciência (ou cooperador, como ele mesmo afirma), Desmond acaba enfurecendo os comandantes do exército ao recursar-se a carregar armas consigo e não demora para enfrentar a corte marcial.
Não é difícil enxergar os conflitos que Desmond precisará vencer na trama, que é tanto um filme de guerra clássico quanto um drama sobre intolerância religiosa. Isto permite que a estrutura narrativa subdivida-se nos três atos clássicos do gênero e, neles, discuta aspectos sobre a personalidade cristã do protagonista: o pré-combate, quando nos familiarizamos com a rotina de Desmond e o que abandonou antes de ir à guerra; o treinamento, em que demonstra ser mais do que o físico franzino sugeria a princípio, até ser colocado contra a parede pelos seus superiores; e a guerra em si, ocasião em que põe em prática os princípios pelos quais se guiou ao longo da vida. Porém, ao mesmo tempo em que é clássica por natureza – repare que Gibson apresenta Dorothy através da câmera lenta e da fotografia quente, como se saída de filmes da década de 50 -, a narrativa amolda-se ao cinema de guerra cínico pós-Platoon, Apocalypse Now e Nascido para Matar e não glamourizado de O Resgate do Soldado Ryan, portanto, é violenta tal como o conflito que retrata: a batalha de Okinawa.
Inspirado nos círculos do inferno de Dante, Okinawa separa-se do mar pelo desfiladeiro apelidado de Hacksaw Ridge, acessível somente escalando a duras penas a íngrime encosta, o primeiro de obstáculos antes de bunkers, cercas de arame farpado, túneis e barricadas, estes escondidos sob o nevoeiro dos bombardeios norte-americanos e sepulcros de corpos mutilados e desfigurados. O cenário ideal para que a fotografia de Simon Duggan (O Grande Gatsby) substitua as cores quentes dos atos anteriores pelo grão grosso e dessaturado habitualmente empregado no gênero, e para que Mel Gibson recorra à violência explícita pelo qual é conhecido, assim que o primeiro disparo assobia no ar e atinge, em cheio, quem suponhomas ser um cadáver. E as cenas de batalha são caóticas e implacáveis: após contextualizar a geografia do local, basicamente um estirão repartido entre o bem (norte-americanos) e o mal (japoneses), Gibson pode aproximar a câmera para retratar a inexistência de regra ou lógica durante o conflito, caracterizado pela aleatoriedade – não sabemos quem será a próxima vítima nem sequer se Doss estará a salvo -, implacabilidade – quando não são tiros múltiplos que decepam membros dos combatentes, são as baionetas ou facas que fazem o serviço – e intensidade – por cerca de 30 minutos, parecemos presos em Okinawa, no mar de sangue e vísceras bem retratados pela maquiagem.
Durante esse período, Doss permanece praticamente invísvel, surgindo exclusivamente para atender aos socorros médicos. Isto é perfeito do ponto de vista do estudo de personagem, pois se Doss age assim, conscientemente ausente quando do conflito armado, o mesmo não se pode afirmar na segunda parte, quando arrisca a vida para salvar os companheiros sobreviventes. Assim, sequer a repetitividade da missão prejudica o andamento da narrativa, mas fortalece-a, destacando os valores que Doss agregou ao campo de batalha e expostos nos diálogos – aqueles, grandiosos e eloquentes, típicos do gênero. E se Andrew Garfield é a encarnação ideal do bom-mocismo, do rapaz sensível e careta – tendo demonstrado isto, por bem e por mal, na sua versão do Homem-Aranha -, apto a suportar o peso da narrativa nas costas, Mel Gibson exagera no retrato aqui e ali ao pesar a mão na componente religiosa – a narrativa está cheia de exemplos, de modo a ser irrelevante citá-los – e ufanista: ao ser questionado do porquê não desistiu do treinamento, a narrativa corta para a bandeira hasteada dos Estados Unidos.
Apesar de enxegar os japoneses como inimigos traiçoeiros e covardes, prontos para serem consumidos pelas chamas ardentes do inferno – a meu ver, uma visão imprecisa (como expôs Cartas para Iwo Jima) porém narrativamente compreensível, afinal o filme é contado do ponto de vista de Doss -, Mel Gibson jamais deixa a narrativa escapar do controle. É como um capitão que sabe a essencialidade de orbitar ao redor de sentimentos primários (amor, fé, valentia, sacrifício) para obter resultados sublimes, igual a este Até o Último Homem.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.