Se você escarafunchar sua memória cinematográfica, encontrará não apenas os filmes que amou, mas também aqueles que detestou, pelas mesmas razões: os sentimentos conflituosos que despertaram. Todos os demais, medianos, medíocres, razoáveis ou outra forma que você deseje denominá-los, permanecerão no limbo de onde jamais sairão. Salvo se você for um crítico de cinema e possuir um site ou blog com arquivo de publicações, aí poderá remexer no baú, envergonhar-se da imaturidade crítica e literária da época (ei, mais de 4 anos é bastante tempo) e redescobrir sua opinião, neste caso, sobre Os Penetras, cuja característica mais marcante era a fotografia de Ricardo Della Rosa. Lá no rodapé, aliás, identifiquei minha habilidade premonitória ao antecipar esta continuação, Os Penetras 2 – Quem Dá Mais?.
Escrito por Renato Fagundes (da série Vai que Cola e que fez sua estreia nos cinemas ano passado com Sob Pressão), o texto da sequência encontra Beto (Sterblitch) emocionalmente transtornado depois da morte do “melhor amigo” Marco Polo (Adnet), que o havia enganado. Enquanto cambaleia pelo Rio de Janeiro com as cinzas do falecido sob os braços, Beto é atropelado por Santiago (Mello), milionário (mas não) que o leva consigo para sua mansão na esperança de evitar transtornos maiores, uma ideia que reacende a mesma carência psicótica que o protagonista sentia por Marco e também o ímpeto de afanar alguns trocados junto de Nelson (Nercessian) e de Laura (Ximenes). E isto os leva ao leilão de artes, em que descobrem que Santiago está interessado em algo que o magnata russo Oleg (Bronnikov) detém.
Mais afeta a ser um estudo de personagem (risos) do que a uma trama sobre vigaristas, a trama jamais encontra um conflito central senão a busca de Beto por um amigo de verdade, sendo, portanto, as tentativas de golpe meras desculpas para empurrar a história adiante, de modo a promover Eduardo Sterblitch a condição de protagonista com resultados pra lá de desastrosos. A experiência adverte contrariamente: ao alçar coadjuvantes engraçadinhos a donos de seus próprios filmes (de Carros 2 à Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas ou, exercite a imaginação com Spike, interpretado por Rhys Ifans em Um Lugar Chamado Notting Hill, ou Alan Garner, de Zach Gallifianakis em Se Beber, não Case!), a narrativa assume o risco da superdosagem de ministrar o que era bom em doses homeopáticas. E simplesmente não consegui achar Sterblitch menos do que insuportável: pessoalmente, pois não há gênero mais subjetivo do que comédia, achei irritante ver Beto chorar e comer yakisoba ao mesmo tempo ou então vê-lo lambendo uma estátua depois de beber algumas (e convenhamos, ele não sabe beber nem um copa d’água sem se molhar).
O que não se confunde com o personagem, cujo desenvolvimento atiça a curiosidade por ele ser mentalmente desequilibrado e socialmente imaturo enquanto esforça-se em preencher a vaga deixada por Marco Polo com Santiago, Oleg ou mesmo com as alucinações com aquele. E a repetividade deste recursos é sintoma da falta de criatividade do roteiro: não basta que Beto converse com o espírito de Marco – ou melhor, com a projeção deste – para estarrecimento do garçom, ele deve fazê-lo de novo no leilão, e de novo na casa de praia de Oleg… e sempre com a mesma dinâmica: a intercalação entre planos subjetivos em que Beto crê estar interagindo com Marco e planos objetivos, do ponto de vista de terceiros – como nós, espectadores – em que ele apenas está falando só e agindo insanamente.
Tamanho investimento ao protagonista provoca consequências óbvias: não há material com que o bom elenco possa trabalhar: Mariana Ximenes limita-se à postura sedutora de femme fatale e o faz através da boca entreaberta e do olhar malicioso que sempre esconde uma segunda intenção; Danton Mello recorre à persona bonachona e bon vivant, ao passo que Stepan Nercessian, que embora recite o mais divertido diálogo do roteiro (“Torço pelo Botafogo, tenho 3 filhos de 4 mulheres diferentes e nenhum dos 7 fala comigo”), não tem nada a fazer senão ser a figura paterna de Beto. Por fim, Marcelo Adnet, um dos humoristas brasileiros mais talentosos da atualidade, permanece no piloto automático.
Quanto à narrativa, o diretor Andrucha Waddington até tenta conferir o ar clássico dos filmes de golpistas através da trilha sonora – com um quê de A Pantera Cor-de-Rosa – porém isto não basta para superar as deficiências do roteiro, que sequer exibe planejamento ou imaginação quando o assunto deveria ser sua especialidade: entrar de penetra onde não foi convidado, e ao ver Beto e Nelson invadir o leilao, pela porta dos fundos, sem sequer serem perturbados pela segurança, é fácil constatar que Os Penetras 2 – Quem Dá Mais? é apenas uma tentativa das mais forçadas de arrancar uns trocados do bolso do próprio espectador.
Desta vez, não cometerei o erro de esquecer disso.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.