Uma dançaria (Karro) e um escultor (Bolzan) decidem morar juntos em um armazém abandonado no centro do Rio de Janeiro, onde poderão se dedicar à arte e ao relacionamento. Seus amigos, a maioria da classe artística (crítico, ilustrador etc), também frequentadores do ambiente, divergem da ideia com ocasionais opiniões dissolvidas no éter e ainda na desconstrução do processo criativo artístico, que é o foco do segundo trabalho da diretora Júlia Murat (de “Histórias que só Existem quando Lembradas”). Mais preocupada com as questões prévias à criação de obras de arte do que, necessariamente, em explorar os significados que delas dimanam, Júlia constrói um retrato maduro, íntimo e simbólico sobre a relação turbulenta entre o artista, o meio e a arte.
Afinal, por que produzir arte? O roteiro co-escrito por Júlia e Matias Mariani responde isto através da urgência que os personagens sentem em expressar experiências, frustrações e anseios. Por esta razão que o espaço desempenha um papel fundamental na narrativa, sendo a divisão igualitária entre o ateliê de escultura e o espaço de dança o ponto de início da decomposição do romance (a canção “Love will tear us apart”, de Joy Division é oportuna neste sentido) e, ironicamente, da produção artística em sua forma mais perfeita. Mas antes que isto aflore, os artistas precisam atravessar provações para desafiar o próprio senso que os norteia. Prova disto é que as melhores performances dEla – que permanece mais tempo em cena em detrimento dEle, distante, ausente e corporificado por meio de suas esculturas contemporâneas – são aquelas que sucedem as discussões conjugais, em que Ela extravasa seus sentimentos por meio do movimento corporal.
Repare como, em suas performances, há sempre um esforço em permanecer em equilíbrio, como se a dança, para Ela, fosse a maneira de recompor a alma após o caos absorvido do mundo real. Pode ser sozinha ou mesmo com um parceiro, em quem pode confiar ao ponto de deixar seu corpo desfalecer sobre o dele com a certeza de que encontrará apoio e energia para novos passos. Já Ele, ignorante até quanto ao que está produzindo, somente reproduz o vazio interior e a busca incessante por sentido, que também o acompanha no sexo (as cenas eróticas são intensas e carnais, menos baseadas em amor e mais em instinto), nos jogos de videogame com um adolescente, cuja voz é o máximo de personificação que teremos, ou no desejo de paternidade, como se o filho pudesse responder seus anseios. Enquanto Ele busca, em um quarto escuro, o gato preto que não está lá, Ela acompanha o fim (ou início?) do cabo que a levará para fora do armazém, de onde mais parece prisioneira do que moradora. Assim, arte representa a natureza dos personagens, indispensável para que eles sejam quem são.
Sob este manto extenso de metáforas bem construídas por Júlia, que rejeita o impulso de explicitar ao público o significado de todos os signos, confiando em sua inteligência para decifrá-los, existe, ao final, um ‘romance’ com o qual podemos nos relacionar, construído a partir de ressentimentos disparados dEle contra Ela, na maioria das vezes. Neste sentido, a leitura de uma crítica negativa resume-se no esforço sádico de mitigar a própria frustração a partir do ataque ao parceiro. E que Júlia reconheça a importância da crítica como elemento indissociável da arte argumenta em favor do discurso completo de “Pendular”, que, aliás, oferece reflexões importantes, como aquela em que um ilustrador dá sua opinião em favor da representação figurada da dança no lugar do simbolismo defendido por Ela, e lembramos que, bem no início, havíamos entreouvido que ele trabalha para uma firma de publicidade, o que interfere no seu julgamento.
Ela, interpretada por Raquel Karro, combina sua formação em dança com as emoções que retrata, e mesmo eu, leigo naquela arte, enxergo na construção dos seus movimentos fluidos o diálogo com o estado de espírito. Já Rodrigo Bolzan trabalha com o que tem, construindo um personagem quase-negativo, cuja circunspecção e ausência afirma mais sobre quem Ele é do que fazem os diálogos; veja o sorriso enciumado e malicioso dirigido a Ela enquanto a observa dançar com dois parceiros ou a postura quando tromba (propositadamente?) em uma colega durante um jogo de futebol.
Assim, a ambiciosa proposta temática e narrativa de “Pendular” encontra em Júlia Murat e no seu ótimo elenco o talento exigido para se manter em equilíbrio, e a rima final, em que a dança e a escultura entram em harmonia, serve de prova de que a arte se alimenta do tumulto emocional do criador para devolver-lhe em troca a paz.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.