Gosto de me divertir pensando que, dentro do coração de cada ator, existe o desejo de se tornar o novo Nicolas Cage do pedaço. Nada justifica a agenda intensa e plural de Ethan Hawke de uns 5 anos para cá, tendo participado de 19 produções (!) desde 2013. Algumas excelentes, cito Antes da Meia-Noite, Chet Baker – A Lenda do Jazz e Maudie; outras, acima da média, O Predestinado, Terra Violenta e a refilmagem de Sete Homens e um Destino; e, claro, uma meia dúzia de bobagens indesculpáveis, como Resgate em Alta Velocidade, Regressão e este Um Dia Para Viver, que deve agradar tão somente os fãs mais ardorosos das produções de ação anencéfalas dos anos 90.
Dirigida pelo ex-dublê Brian Smrz (não imagino como se pronuncia seu sobrenome), que tem apenas um crédito na direção no currículo – Herói (2008), estrelado por Cuba Gooding Jr. e Ray Liotta -, a co-produção Estados Unidos e África do Sul foi lançada diretamente em vídeo na gringolândia e despejada nos cinemas do mercado internacional. Sua trama, escrita a seis mãos, encontra Travis (Hawke), ex-soldado e assassino de aluguel sem alma e nenhuma luz dentro dele como consequência da morte da mulher e filho, morando com o sogro (Rutger Hauer) de frente para o amor, bebendo e se drogando enquanto espera o fim. Certa ocasião, um ex-companheiro (Paul Anderson) contrata Travis para matar o delator protegido por Lin (Xu Qing), agente da Interpol, mas a missão termina mal (ou bem, já que o mercenário era niilista ao extremo).
Porém, Travis não permanece morto por muito tempo e acaba ressuscitado, por 24 horas, pela tecnologia criada por Wetzler (Liam Cunningham), o típico sujeito sem amarras morais e disposto ao que quer que seja para proteger a corporação detrás de si. E, depois de Travis aceitar a ideia de importar o relógio subcutâneo de O Preço do Amanhã – e a morte iminente -, o mercenário muda de lado e auxilia Lin – talvez porque ela tenha um filhinho ameaçado ou, então, porque deseja que os peixes voltem a amá-lo (risos).
Com a Bíblia do gênero de ação dos anos 90 debaixo do braço, Travis precisa ser o melhor no que faz, ser traído por quem pensava ser seu melhor amigo e estar na jornada de redenção antes de se despedir deste plano de existência e se reencontrar com os seus, ao passo que a narrativa deve inserir perseguições de carro, destruição de propriedade pública, explosões, tiroteios a rodo e, não nos esqueçamos, a famosa cena em que o protagonista precisa confiscar um carro (pobre taxista). Tudo isso sem a mais remota participação da polícia, para não deixar clichês descobertos.
Por Smrz ser ex-dublê, os set-pieces são bem decupados e montados, ainda que anacrônicos e implausíveis, mesmo dentro da lógica frouxa do supersoldado do gênero de ação (mais semelhante a John Wick do que a Jason Bourne). Assim, Travis aparece e desaparece quando e onde bem entende, enfrentando uma dúzia de antagonistas, acertando tiros na mosca e não enfrentando nenhuma ameaça à vida, senão por causa da contagem regressiva no seu braço ou dos apagões provenientes de alucinações (é curioso que Lin aceite ser a passageira a bordo do carro do instável anti-herói).
Porém, ainda que seja competente no quesito ação, o roteiro é indefensável. A tecnologia é pobremente desenvolvida e parece haver sido inserida a toque de caixa para dar um tcham na trama (estou sendo bondoso); personagens são introduzidos após transcorridos dois terços da narrativa (o guerrilheiro sul-africano) e determinados aspectos, como a experimentação em negros, meras desculpas para buscar relevância social inexistente no restante do tempo. Isto somente não é pior do que exibir o porta-retrato da alegre família de Jim, tentando conferir a tridimensionalidade que o antagonista não teve no restante do tempo. Não esqueçamos que querem que acreditemos que Travis é capaz de se redimir por ter poupado uma ÚNICA vida.
Salvo para os fãs ardorosos do gênero que não podem perder nada, Um Dia Para Viver já seria uma perda de tempo até se você tivesse toda a eternidade pela frente.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.