Narrativas como “Sexta-Feira Muito Louca”, “De Repente 30” ou “Quero ser Grande”, confessadamente a inspiração desta “Sexy por Acidente”, são como biscoitos da sorte que revelam mensagens de auto-ajuda na fantasia idealizada por seus protagonistas. O capítulo desta vez é sobre auto-estima, qualidade que Renee Bennett (Schumer) perdeu enquanto folheava as páginas da revista de moda para que trabalham no porão onde a esconderam junto com uma equipe de informática composta por uma única pessoa. Menos parecida do que gostaria com as modelos de corpos artificialmente esculpidos, Renee declarou guerra contra o espelho e, por consequência, consigo mesma, sabotando suas chances de felicidade no amor e sucesso profissional.
Tudo muda quando, tentando queimar as calorias no spinning, Renee sofre uma concussão e acaba alterando a maneira com que se enxerga: no lugar da insegurança e timidez, autoconfiança e empoderamento que a impulsionam, sem esforço, ao posto que almejava na empresa e ao lado de um alguém que ama. É como se “O Amor é Cego” assumisse a perspectiva de Rosemary, não a de Hal, de modo que a maneira com que a protagonista se enxerga comece a refletir o amor próprio recém descoberto. A mensagem é pertinente, ataca a superficialidade do culto da beleza e mostra que esta não se resume à foto do perfil, mas é sinônimo de autenticidade.
A melhor decisão da narrativa é, sem dúvida, que Amy Schumer interprete ambas versões de Renee, já que isto evidencia que o que a impede de ser a melhor versão de si própria não é a aparência, a forma física ou o penteado que reproduz sem sucesso, e sim a trava que tem no cérebro. Este, mais do que cosméticos, é o produto mais valioso fabricado pela indústria de beleza, que lucra com as ilusões e aspirações fecundadas às custas da baixa auto-estima. Assim, a mesma Renee cuja calça rasga no banco da bicicleta (exemplo, também, do humor ineficaz da comédia) é a que arranca aplausos da plateia enquanto se exibe em um concurso de biquínis. E Amy é bastante feliz em retratar ambos os estados de espírito da personagem através de discretas modificações na postura corporal.
Contudo, em boa parte do tempo, a narrativa parece sabotar-se, inclusive sem que percebam a dupla de diretor Abby Kohn e Mark Silverstein, em seu trabalho de estreia. Repare que o espectador sorri DE Renee, e não COM ela, como se fosse engraçada a ideia de que alguém fora dos padrões pré-determinados pudesse ser a mais bonita do salão e agir como tal. Isto proporciona, ainda, uma comédia baseada no embaraço e vergonha alheia, que resulta em sorrisos amarelos mesclados com sentimento de culpa, em vez de retratar justo o contrário: que todos nós fazemos parte do sistema que ajuda a abalar, definitivamente, o amor próprio daqueles ao nosso redor, ao forçá-los à comparação injusta com modelos de photoshop.
A propósito, todo o discurso feito por Renee em defesa de amar quem se é vai ao encontro do consumo de produtos de beleza, com a diferença de serem endereçados à segunda linha de clientes (termo cunhado pela própria narrativa e jamais rebatido pela protagonista). Para ela, o que diferencia o público alvo típico da empresa daquele que tentam alcançar é apenas a condição social, a capacidade aquisitiva e a possibilidade de se maquiar dentro do metrô ou ônibus no caminho para o trabalho. E note também que, mesmo depois de tudo por que passou, Renee não demora a retorna ao ponto de partida da trama, o templo de idolatria à aparência, quando a lógica demandaria exatamente o contrário. Aliás, seu figurino ainda revela todo o equívoco narrativo, pois, se no princípio Renee veste cores alegres e vibrantes (a única a fazê-lo), ao término acata o tom monocromático de todas as demais ao seu redor.
Isso sem esquecer que, tirada a mensagem da narrativa, esta se revela anacrônica e datada. A começar pela trilha sonora de Michael Andrews, que não perde a chance de encerrar cada close no rosto melancólico de Renee com acordes piegas de compaixão. Já o romance com o simpático Ethan (Scovel) é bem água com açúcar, e o fato de a narrativa embaçar ou não exibir o corpo nu de Renee, só para evitar a censura mais grave, enfraquece sua mensagem. Finalmente, a trajetória de Renee é das mais previsíveis que há, da mesma forma como são artificiais suas melhores amigas Mallory e Vivian, personagens unidimensionais postos na trama com o propósito único de proporcionar a redenção necessária.
São muitos equívocos que a carismática Amy Schumer e Michelle Williams, que parece ter engolido um balão de hélio, não conseguem consertar, por melhores que sejam as intenções deste “Sexy por Acidente”.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.