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Olhar de Cinema, dia 1

Olhar de Cinema, dia 1

Experimentações cinematográficas marcam o primeiro dia do Olhar de Cinema

O 11º Olhar de Cinema, Festival em Curitiba que celebra a produção autoral nacional e internacional, retornou com sessões presenciais em 1º de junho com Vai e Vem

Vai e Vem (2022), de Chica Barbosa, Fernanda Pessoa

No ano de 2020, as amigas Chica Barbosa, cineasta mexicana radicada em Los Angeles, e Fernanda Pessoa, cineasta brasileira, decidiram corresponder-se através do que denominam um diálogo fílmico, vídeo-cartas que serviriam como antídoto ao meio de comunicação instantâneo dos dias de hoje. A dupla estabeleceu algumas regras: a comunicação aconteceria a cada 3 meses e teria por base a forma cinematográfica de 16 diretoras do cinema experimental (Paula Gaitán, Ximena Cuevas, dentre outras). Assim, as vídeo-cartas nada mais são do que curtas inspirados no momento em que Chica e Fernanda vivem de abril de 2020 ao início de 2021, montadas em um longa-metragem experimental reflexivo do processo fílmico e de si mesmas. 

Logo antes dos créditos iniciais, Fernanda, em voz sobreposta, explica o hábito de debater cinema e política com a amiga. É natural que o tema que tenham encontrado seja relacionado ao governo de ambos os países – Brasil e Estados Unidos – e as hipocrisias que cercam o discurso deles no período mais agudo que a humanidade viveu nos últimos anos: a pandemia do Covid-19. Imagens caseiras registram o panelaço que aconteceu em São Paulo e o registro da marca de 5 mil mortos anunciada no Jornal Nacional, enquanto, nos Estados Unidos, os 350 bilhões de dólares são desviados da finalidade de auxiliar pequenos negócios ao som de Live and Let Die e a comunidade negra vai às ruas com o movimento Black Lives Matter

Jair Bolsonaro e Donald Trump são relacionados, em termos de discurso fílmico, através do descaso e empatia com os mortos do Covid-19. E continuarão a ser, já que Fernanda enfatiza o aspecto político ou a relação com a família, e Chica, a forma como os Estados Unidos tratam o imigrante e a questão do não pertencimento. No processo, eleições presidenciais americanas e municipais brasileiras são objeto do discurso. 

Como cinema, Vai e Vem privilegia a forma ao enredo. Não há, e nem precisa haver, coesão salvo aquela proporcionada pela linearidade cronológica. O que existe é um desejo da dupla de diretoras em brincar com imagens sobrepostas, transparências, abstrações, bitolas variadas e expressões imagéticas que produzem impacto pela imagem, e não pelo conteúdo que encena. O documentário não é, portanto, somente um paralelo entre países presididos por homens de extrema direita – assumidamente assim -, mas também a defesa de uma forma de comunicação além de emojis ou de telas divididas no zoom. Uma comunicação que há no desejo intelectual e artístico de tentar se revelar à outra – e a nós – e que é porta de entrada para conhecer artistas mulheres que, por limitação da indústria da arte, eram desconhecidas da maioria dos cinéfilos. 

Rewind & Play (2022), de Alain Gomis

Exibido no Fórum do Festival de Berlim deste ano, “Rewind & Play é um documentário obtido a partir do registro bruto da viagem do jazzista Thelonious Monk a Paris, em 1969, para um concerto. Antes, participou da gravação do programa Jazz Portrait, comandado por Henri Renaud, com quem parece ter alguma familiaridade, mas nenhum traço de amizade. Com efeito, a entrevista é desconfortável antes mesmo da primeira pergunta. Já na chegada de Monk, no passeio de carro ao chegar em Paris, sentíamos algum desconforto provocado pela voz sobreposta – que logo associamos com a de Henri – e o silêncio de Monk acompanhado da esposa. Mas é nos bastidores da entrevista que o pior acontece.

A dinâmica entre entrevistador e entrevistado nunca acontece, apesar das muitas tentativas de Henri. A princípio, parece divertido ver o entrevistador questionar a razão de Monk ter colocado o piano de cauda na cozinha. “Era o maior cômodo da casa”, respondeu o músico – já exausto – de forma objetiva e insatisfatória para Henri. A câmera então corta para uma das muitas vezes em que Monk tenta encerrar a entrevista e é interrompido por Henri: só mais uma pergunta, só mais uma música. A direção de Alain Gomis revela o contato de Henri e a forma com que Monk retira a mão dele de seu ombro.

Detrás da respiração ofegante, do suor, do olhar vulnerável, Monk rememora que já havia sido maltratado em Paris, na década de 50: não convidaram músicos para acompanhá-lo, tinha o menor cachê, apesar de ser o principal nome do evento. Henri corta a resposta da versão final – “é difamatória”. Alain Gomis discorda e revela o teor 5 décadas depois. A entrevista é opressiva: Monk sobrevive a ela em razão da música, pois fez assim durante toda a sua carreira; já Henri está desestruturado por não obter o que deseja, na dinâmica de poder que evidencia o despreparo do entrevistador. O desencontro é exaltado nos minutos finais, quando a direção brinca de reposicionar áudio e vídeo para obter um efeito poderoso na crítica.

Como registro, Rewind & Play é simples e breve. Seus 65 minutos não desejam apresentar a carreira e a vida de Monk, mas, através da articulação narrativa, revelar o que um músico admirado e vanguardista precisou enfrentar, no ápice, durante uma entrevista desastrada. A indução é inevitável: o que será que Monk precisou enfrentar, então, no início da carreira? A resposta está dada nas entrelinhas deste ótimo documentário.

Freda (2021), de Gessica Geneus

Em Porto Príncipe, no Haiti, não há como haver histórias românticas. Os amores ou frutificam de interesses, mas não em função da felicidade, ou apodrecem por causa da desesperança de um país tomado pela corrupção e indignidade. O que fazer: resistir pacificamente ou propor uma revolução nos moldes daquela ocorrida em 1804 e rememorada em trechos da narrativa? Freda acredita saber a resposta, embora a narrativa teste o limite de sua resiliência e passividade ao assistir à irmã caçula casar-se com um homem rico, ou ao irmão emigrar em direção ao Chile, ou à mãe cega pela doutrina cristã. Freda, ela própria, é menos personagem e mais observadora (e consoladora). Em frente à mercearia da mãe, de onde sai o sustento precário da família, assiste às manifestações reais montadas dentro do arcabouço da ficção. 

Gessica Généus escreve e dirige esta co-produção haitiana e francesa selecionada para disputar a mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2021. Em seu favor, a perspectiva de uma realidade que nós, brasileiros, já conhecemos superficialmente através de noticiários, mas não em primeira mão. Contra, a forma literal com que enuncia os conflitos por que passam os personagens: o clareamento da pele da irmã é um ponto de discussões raciais menos eficiente do que o fato do líder religioso da comunidade ser um homem branco ou de o nome de Freda advir de uma divindade vodu (cuja mãe apenas não mudou porque era caro demais). Gessica não precisava ser óbvia como é, no final, quando Freda oferece uma tentativa de acalanto pela sororidade.

Gosto mais do trabalho da diretora ao reduzir a profundidade de campo e estreitar os espaços e cômodos onde Freda está. A estrutura da história também é satisfatória em apagar o irmão Moïse porque não sua realidade é bem diferente da de suas irmãs e mãe. Por falar nela, Fabiola Remy é uma atriz potente porque representa uma forma de antagonismo mais dolorosa do que a dos poderosos que tomaram de assalto a dignidade do povo haitiano. Sobre estes, embora inevitável a consequência de suas ações, a própria limitação narrativa reduz a eficiência do protesto de uma dúzia de alunos na saída do colégio. Não há força dramática na imagem, ante a escassez humana disponível na produção.

Desse modo, como trabalho inicial, Freda empodera uma mulher negra haitiana a contar uma história com a qual tem familiaridade, ainda que o faça através de uma linguagem cinematográfica que confie menos no poder das imagens em favor da literalidade do discurso. 

Esta Casa (Cette Maison, 2022), de Miryam Charles

A cineasta canadense, de ascendência haitiana, Miryam Charles experimenta com a linguagem cinematográfica como o meio de compreensão do destino da prima, Tessa, morta aos 14 anos, e também da relação dela com a mãe. “Meu coração está pesado, não aguento mais carregá-lo” é um diálogo que, embora não esteja expressamente posto assim, poderia ter vindo do bilhete de suicídio de Tessa, uma hipótese que não pode ser descartada para entender o que ocorreu com a adolescente. Miryam não propõe investigar o que houve, mas encenar as causas e, mais importante, o luto superveniente compartilhado pela família e desaguado nesta obra íntima e experimental. 

Um corpo que jamais existiu, é assim que o roteiro de Miryam denomina a atriz e álter ego de Tessa, Schelby Jean-Baptiste. É como uma presença fantasmagórica que assombra a mãe, vivida por Florence Blain Mbaye, de tal maneira que o diálogo da assistente social de que “Se você nos deixar entrar, vamos documentar tudo, o belo, o feio, o horrível”, serve também para documentar o estado de espírito de uma mãe incapaz de lidar com uma perda significativa. Documentar isto é um trabalho difícil e que Miryam tenta enfrentar a partir de uma fotografia em 16 mm, para enfatizar o atributo caseiro, e uma construção cenográfica artificial: em certo instante, Tessa atravessa uma porta dentro do estúdio para chegar no corredor da casa onde crescem em Connecticut, noutro, ao lado da mãe, pairam a frente da paisagem haitiana exibida no telão. 

Imagens que remetem a ruínas expressam o luto, enquanto as paisagens são memórias distantes do que a família deixou antes de chegar a Quebéc, o destino final. A possibilidade do cinema servir como mecanismo terapêutico é testada por Miryam em um documento belo e trágico, cuja potência martela na cabeça do espectador como o tema repetido “il faut se lever (ficar de pé). Tessa fica de pé após a morte através de seu avatar cinematográfico, enquanto Myriam, do tratamento dramático à tragédia familiar. 

Não falta poesia a este belo experimento. 

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