Spike Lee cansou de cometer excessos na carreira, abrindo mão de valores narrativos em troca da crítica direta e raivosa contra o racismo institucional norte-americano. Se não ouso questionar a motivação do diretor, que é um dos que melhor transforma a arte em palanque de protesto, devo sim apontar que isto nem sempre reverte em um produto cinematográfico competente. Mas quando o autor equilibra o espinho que machuca seu espírito criativo com o talento detrás das câmeras, quem ganha é o espectador, com arte que entretém e milita em proporções idênticas, como é o caso deste excepcional Infiltrado no Klan, baseado na autobiografia do primeiro policial negro de Colorado, Ron Stallworth.
Que começa com uma introdução para lá de impactante, em que Alec Baldwin (que parodia Donald Trump no Saturday Night Live) grava um discurso de ódio, retratado na estética de cores e ângulos que o demonizam, convocando os supremacistas brancos contra os negros (não empregarei a palavra que usa por questões morais) e a conspiração judia internacional, em defesa dos valores conservadores e protestantes e da Confederação, a parte derrotada na Guerra Civil e que culminou com a abolição da escravatura. Isto antes de apresentar nossos heróis, Ron (Washington) e Flip Zimmerman (Driver), o judeu infiltrado n’A Organização (como seus membros batizaram a Klu Klux Klan), e que desbarata o plano do segmento mais radical de cometer um atentado.
Um dos pontos centrais da narrativa é a dinâmica entre Ron e Flip, e como aquele convence este último da essencialidade em discutir política (“O que há de mais importante”, questiona-se) e em combater todas as formas de discriminação, como se fosse Spike Lee conversando diretamente com o espectador. Um dos retratos disto é que o que pareceria ser a investigação rotineira de um grêmio estudantil extremista (em tempo de Panteras Negras), termina com o reconhecimento de Flip e seu parceiro Jimmy (Buscemi) de que a conclusão do discurso está sedimentada no mundo real, ou seja, a mesma polícia de que fazem parte é racista e a revolução é o caminho a ser trilhado para modificar este cenário.
Mais interessante é o conflito interno de Ron, em ser membro da mesma polícia que agride, humilha e persegue seus irmãos, e em como enfrenta o preconceito diário em um período em que era comum, apesar de sua reprovabilidade ser atemporal, ser apelidado de termos pejorativos herdados de décadas passadas. Não é somente esta a forma de discriminação sofrida, como também aquela, dita inofensiva no crivo dos brancos que a proferem, em que sua habilidade de se comunicar formalmente é posta em cheque ante a falsa crença de que os negros têm um dialeto próprio composto de gírias.
Além de respeitar o formato do subgênero policial buddy-cop e o desenvolvimento típico da narrativa que pretende contar (com direito àquele membro d’A Organização que desconfia da identidade do infiltrado), Spike Lee também povoa a narrativa com críticas diretas (como ao presidente Donald Trump, à estupidez histórica de quem nega o Holocausto ou à polícia racista na figura de um dos seus, que não hesita em afirmar que apalpar e intimidar mulheres negras é sua prerrogativa) e indiretas (como o momento em que retrata reuniões simultaneamente, uma calorosa sobre injustiça e perseguição, a outra, acalorada, com ênfase na arrogância e violência das palavras… e nem preciso distinguir quem discursa para quem). A este respeito, ao revisitar o clássico (argh!) O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith, uma obra seminal para a técnica e estética cinematográfica, porém, indiscutivelmente, uma das mais preconceituosas já vistas, Spike Lee expõe como funciona a dinâmica de incitação ao ódio no emprego de fake news (a produção do início do século passado é fake do início ao fim). É fácil traçar paralelos disto com movimentos anti-povo disseminados ao redor do mundo, inclusive no Brasil, em que os opressores cegam-se pela mídia dos dominadores a ponto de nelas crer sem o menor crivo de discernimento, com consequências desastrosas para os oprimidos que em suas mãos são flagelados (de muitas maneiras que não apenas a física, a mais óbvia).
Toda a estrutura narrativa ensaia a chegada do terceiro ato como se estivéssemos dentro de uma cápsula do tempo, assistindo ao desenrolar de eventos históricos que culminassem nos dias atuais. E não me refiro exclusivamente às imagens de arquivo, montados no epílogo e instrumentos eficaz para provocar a revoltar interna do espectador ante a injustiça racial, mas também ao encerramento do arco de Ron e Flip: a ironia em ser vítima do próprio ódio, a realidade em expor a postura defensiva e corporativista das autoridades e instituições e o bom humor ao encontrar o mínimo denominador comum para continuar a sorrir, mesmo que o mundo permaneça acoitando-o.
Crítica escrita durante a cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Previsão de estreia: 22 de novembro de 2018.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.