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A Baleia

5/5

The Whale

2022

117 minutos

5/5

Diretor: Darren Aronofsky

Brendan Fraser brilha, mesmo que submerso em próteses e maquiagem, em um filme que impressiona além das aparências.

por Alvaro Goulart

Ele acha que sua vida será melhor se ele puder matar essa baleia, mas, na realidade, não vai ajudá-lo em nada, dizia o ensaio sobre Moby Dick.

Numa tela gigante, um homem em obesidade mórbida é exibido enquanto se esconde aos olhos de seus alunos. Ora sentado em um sofá, ora sentado em uma cadeira de rodas, mais de duzentos quilos de angústias e arrependimentos são expressados por olhos que não perderam sua intensidade sob tanta prótese e maquiagem. Do outro lado dessa mesma tela, outro homem obeso acompanha o desenrolar da narrativa. Esse, escondido sob a escuridão do ambiente, desconhecido da câmera e, por enquanto, anônimo dos olhares.

Ao longo dessas quase duas horas foi quase impossível não se projetar naquele mesmo lugar, de alguma forma. Sim, quase sempre o medo de uma pessoa gorda é chegar aquele estágio: imobilizado pelo próprio corpo, em um flerte constante com a morte, enxergado apenas como um diagnóstico, ou pior, uma massa adiposa desprovida de humanidade. Eu provei com intensidade esse medo durante todo o filme. Será que irei chegar nesse estado de abandono de si e de solidão? Também não foi difícil resgatar incertezas que colecionei sobre escolhas e mágoas que deixei pelo caminho.

Por mais realista que seja a obra de Aronofsky, sua proposta vai além de ser um circo de horrores. Mas para conseguir visualizar ali alguém cuja trajetória é marcada por arrependimentos, falhas e a angústia de se redimir, é preciso exercitar o olhar para além da aparência – um exercício que se tornou mais difícil em tempos de culto às miragens virtuais de sucesso e felicidade carregados mais de filtros do que camadas.

O diretor desafia o nosso olhar com imagens que instigam compaixão e/ou repulsa em uma razão de aspecto sufocante de 4:3 onde vemos Charlie ocupar a maior parte do quadro com seu corpo. A exibição de uma nudez que não é cobiçada pelos olhares ou o devorar de uma refeição em uma cena de verborragia sensorial podem transparecer uma direção sadista por parte de Aronofsky. Entretanto, quando não o coloca isolado no canto de um apartamento que reflete sua psiquê, o diretor nos coloca bem próximos do rosto de Charlie, em um primeiro plano que aprisiona ainda mais o protagonista ao mesmo tempo que obriga o expectador a finalmente direcionar o olhar para olhos e não mais para um corpo.

O apartamento de Charlie como um reflexo de seu estado psicológico

Charlie é mais do que um homem obeso. É um homem de sensibilidade ímpar. É um professor dedicado. É um viúvo sobrevivente, um homem LGBTQIA+. Mas também é um ex-marido infiel e um pai ausente – ainda que tente uma reconexão tardia. Por mais maniqueísta que o filme pareça, ele não é. E a câmera não poupa nenhum dos dois lados da tela. Ainda assim, não é apenas o julgo do expectador que é colocado em xeque. Todos os envolvidos na história estão.

Charlie digere o peso de suas escolhas e como essas refletem na vida dos outros enquanto tenta se reconectar com sua filha, Ellie. A adolescente é agressiva, mas também convive com suas angústias. Tão deslocada do mundo quanto seu pai, Ellie não devora seus sentimentos, mas os vomita. Em todos, sem filtro. Dois personagens me chamam a atenção: Liz, a enfermeira de Charlie, e Thomas, um missionário cristão. Cada um deles busca a salvação de Charlie por um caminho: Liz tenta salvar seu corpo, dando assistência como profissional de saúde e insistindo para que o mesmo busque tratamento médico; Thomas tenta salvar sua alma através de seus preceitos religiosos. Cada um a sua maneira também acabam desumanizando-o em algum grau. Vale o destaque à fala “Mastigue sua comida como um ser humano normal”. E, se sua aparência já o monstrifica, sua sexualidade e seu amor perdido pro suicídio também são colocada na balança do bem e do mal.

Ellie (Sadie Sink) e seu olhar que tanto tem a dizer

“Eu preciso saber que fiz uma coisa certa na vida” – Charlie

A Baleia é tanto um filme sobre obesidade mórbida de maneira estrita quanto seu título se dirige à aparência do protagonista. O luto e a depressão que dele deriva são temas que orbitam a obra. Charlie se coloca em constante conflito entre as pulsões de vida e morte. Quando não é bem sucedido em reestabelecer os laços com Ellie, desconta a frustração na comida. Não existe prazer no comer; ele faz com a comida o que não consegue com os sentimentos. Seu companheiro lidava com a depressão de maneira contrária, se privando de comer. Ainda presenciamos diversos pedidos de desculpa de Charlie por seu comportamento autodestrutivo. Se em determinado momento nos deparássemos com uma descrição fatalista da internet, ou um artigo científico a respeito de insuficiência cardíaca congestiva, essa cena terá a mesma função de desviar da dor pessoal que as descrições sobre espécies de baleias ao longo do livro Moby Dick.

O filme é divisivo quanto às opiniões. Muitos ataques dizem respeito ao caráter superlativo do tom do filme, classificando-o como piegas. A ampliação do tom emocional do filme se dá não só pela interpretação mas pela atmosfera criada pelo diretor. A trilha com peso dramático que só perde intensidade para dar espaço ao som do mastigar, o choro soluçante, o escancaramento do corpo gordo somados à interpretação intensa fazem de A Baleia um melodrama. Esse termo, usado equivocadamente em caráter pejorativo, se refere à um subgênero cuja principal característica é a elevação da dramaticidade através da expositividade de sentimentos à flor da pele. Despido dessa forma, a obra de Aronofsky seria recebida como grotesca. Basta analisar os olhares que se dirigem normalmente ao corpo gordo. Quando o desprezo não é explícito, vem disfarçado de uma falsa preocupação com a saúde – Para cada foto numa rede social, centenas de comentários maldosos de inquisidores e fiscais do “bem estar”. Todo o suor e restos de comida impregnados à roupa seriam temperos para o escárnio. Logo, é justificado o esforço sobrehumano para humanizar aquilo que a maioria insiste em não enxergar como pessoa. Nesse sentido, A Baleia muito se assemelha com O Homem Elefante, de David Lynch.

Brendan Fraser está impecável. Como dito anteriormente, é possível se sensibilizar apenas com o olhar ainda que por trás de toda aquela maquiagem. Existe uma doçura quase que infantil em sua construção de personagem. Charlie não é ingênuo apesar de parecer ser. Ele é consciente dos danos que causou e ainda causa, e recebe as reações daqueles ao seu redor sem censurá-los. A complexidade do seu personagem exige com que o ator consiga extrair do expectador um grau de empatia cujo olhar supere sua condição física. É fácil se compadecer de sua situação da mesma forma como é fácil menosprezá-lo. Novamente, não é um filme sobre obesidade.

Apesar de seu desempenho, também foi questionado a escolha de Fraser para o papel. Muito foi dito sobre não ter um obeso mórbido interpretando o personagem. Além de sua desenvoltura como ator, Brendan luta contra o sobrepeso da mesma maneira que luta contra a depressão, o que já o colocaria como mais que capaz de interpretar Charlie. Essa reivindicação é leviana por si só, além de esvaziar o debate a respeito da gordofobia. A indústria não precisa de qualquer outro ator nesse papel. Ela necessita de artistas obesos interpretando personagens que não alívios cômicos ou coadjuvantes que sirvam de “escada” para personagens principais que refletem o padrão de beleza da indústria do consumo.

A Baleia é um filme sobre o direcionamento do nosso olhar sobre o outro. Ele desafia o conforto voyeurista do olhar do expectador botando em cheque seus sentimentos com a imagem na tela. É um convite para olhar para dentro de si e nos confrontar com a nossa natureza e a de nossas escolhas. É também um filme sobre expiação e culpa, sobre reencontros mesmos quando se está perdido ou se acredita ter perdido tudo. Por mais terreno que sejam suas temáticas, sua conclusão foi transcendental. Com certeza é um filme que me dilacerou. Medos, incertezas, angústias e revoltas foram revisitados. Seja pela carga dramática ou pela bagagem emocional que eu também projetei sobre ele, foram necessários uns dez minutos após os créditos para eu me recompor.

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