Mesmo em Mulher-Maravilha, o melhor e mais bem sucedido produto da parceria Warner / DC, podíamos enxergar a estética acinzentada, empoeirada e encardida de Zack Snyder, que retirou, de todas as produções que tocava, junto com as cores, toda a diversão esperada de personagens que deveriam ser mais assumidamente bregas, como ocorre com Aquaman. Melhor que o diretor James Wan (Invocação do Mal, Velozes e Furiosos 7) tenha rompido com esse visual funesto e malsucedido, para investir na abordagem ultracolorida a ponto de ser fluorescente e, assim, menos careta, de modo a sequer tentar se levar a sério por mais de 5 minutos sem, por exemplo, cortar o climão com a imagem do polvo Topo tocando bateria.
Com texto escrito por David Leslie Johnson-McGoldrick (Invocação do Mal 2) e Will Beall (Caça aos Gangsteres), a trama é a típica história de origem do meta-humano mestiço Arthur Curry (Momoa), filho da princesa fugitiva Atlanna (Kidman), condenada à morte no Fosso por ter fugido da submergida Atlântida, e do faroleiro Thomas (Morrison). Entretanto, James Wan evita que a narrativa seja cronologicamente linear, inserindo com malandragem e perspicácia dados sobre o passado de Curry (muito bem) costurados com a ação em tempo presente. Enquanto o herói combate piratas nos arredores da vila pesqueira onde mora, o rei Orm (Wilson) começa a reunir os sete mares para declarar guerra contra os habitantes da superfície. Sua motivação ambientalista também tem um quê fascista, além do visual de Patrick Wilson e da forma como se refere ao meio-irmão, mas especialmente como cria e manipula determinados acontecimentos a fim de alcançar o título de Mestre dos Oceanos. Ciente do perigo que todos correm, a princesa Mera (Heard) apela a Curry que reivindique seu trono. Para tanto, precisa obter o tridente mítico de Atlan, guardado por uma criatura monstruosa no fundo do mar.
Uma missão que Curry reluta em aceitar, tornando sua trajetória ligeiramente semelhante à de Thor, ambos príncipes irresponsáveis que precisam arcar com o ônus real e unir todos os súditos (sete mares ou nove reinos) em torno do objetivo comum, contra um irmão caçula maléfico que clama o trono. Porém, o que Thor tinha de solene, contribuição shakesperiana de Kenneth Brannagh ao menos no primeiro filme, Aquaman tem de descontraído, tentando engordar seus personagens com dramas perceptíveis, como o ressentimento de Orm, antes de devolvê-los à montaria de tubarões, cavalos-marinhos gigantes ou criaturas que parecem crocodilianas. Se a Marvel levou, a princípio, a sério o rei do trovão, a DC evitou cometer o mesmo erro e tratou de apostar na irreverência e carisma de Jason Momoa com um humor ainda mais predominante do que ocorrera em Thor: Ragnarok. A decisão parece-me a mais acertada, ainda mais porque minimiza quaisquer críticas que possam existir contra o roteiro.
Que não consegue honrar a ambiciosa premissa inserida no princípio e que, no melhor dos mundos, serviria como um farol da narrativa: a morte do pai de David Kane pela recusa de Arthur em ajudá-lo. Uma decisão cruel e irresponsavelmente não heróica inédita ou, ao menos, rara no subgênero, que inflama o desejo de vingança de Kane, agora rebatizado Arraia Negra (Yahya), mas cuja promessa construída pela própria narrativa por ela não é concretizada. É um dos muitos personagens que servem somente para rechear a produção de nomes famosos a serem usados nas inevitáveis sequências, igual a Vulko (Dafoe) e Nereus (Lundgren), enquanto a trama dedica seus olhares a Orm e, em menor grau, Mera, a típica “em breve namorada”, mas adaptada aos dias de hoje. Portanto, independente e forte para defender-se sem auxílio de Aquaman; pelo contrário, salvando-o em mais de uma ocasião.
Além disso, o roteiro também é tolo em seus diálogos (as lições de responsabilidade e moral ensinadas por Mera a Arthur), em como soluciona os obstáculos postos diante do herói (o que vocês acham de um sinalizador que não apaga debaixo d’água?), em suas (in)consequências (o salvamento de uma criança quase causa a morte de uma família toda, na queda de um sino) e em suas inconsistências (como Arthur poderia saber que as criaturas do Fosso têm medo de luz se ele estava conhecendo-as agora?).
Mas James Wan corrige o curso do roteiro com seu trabalho de direção, que aproveita o ambiente aquático criado em computador para posicionar a câmera em qualquer ponto que desejar, e movimentá-la com igual liberdade, inteligentemente disfarçando as emendas da montagem para tornar a ação ágil, fluida e empolgante. Isto lhe permite acompanhar ações que se desenvolvem simultaneamente, saltando de uma para outra com desenvoltura, e o melhor exemplo disto é aquela que acontece nos telhados de uma cidadezinha italiana. E como amante do cinema, Wan sabe escolher suas referências muito bem, a começar de As Aventuras de Tintim em que a citada sequência se inspira, passando por Piratas do Caribe, Star Wars, Indiana Jones, Blade Runner (a viagem no espaço “aéreo” néon de Atlantis), Tron, Círculo de Fogo, e mesmo propriedades da rival Marvel: Thor (com sua versão da ponte Bifrost) e, o mais curioso, X-Men: O Confronto Final, com um personagem que atravessa paredes da mesma maneira como fazia o Fanático.
Na mesma vibração, a trilha sonora, que embora não seja marcante como fora a de Mulher-Maravilha, captura o espírito aventureiro e libertário de Aquaman com riffs de rock ‘n roll sem roubar a atenção demasiadamente para si. E ainda o cuidadoso e impressionante design de produção, a começar pela maneira com que individualiza os sete mares (uns mais do que os outros, evidentemente) até o visual das criaturas marinhas e os figurinos, com direito a uma medusa sendo usada como acessório do traje de gala de Mera.
Tudo isso concorre para que Aquaman seja, certamente, o primeiro filme da Warner / DC puramente divertido, dispensando artimanhas narrativas e mensagens subliminares em favor de uma narrativa que privilegia, em todos os aspectos que podemos desejar no subgênero super-herói, o maravilhamento. Traduza, se ousar fazê-lo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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