High Flying Bird não é a primeira narrativa de Steven Soderbergh fotografada em um iPhone (a versão 8). Em 2018, o diretor empregou a lenta angular da versão mais moderna do aparelho para conferir a sensação de claustrofobia e ângulos expressionistas à jornada da personagem interpretada por Claire Foy em direção à loucura em uma clínica psiquiátrica. Antes dele, em 2015, Sean S. Baker apostou em um iPhone 5 para conferir ares de cinema verité à narrativa do aclamado Tangerine. Se nesses filmes, o smartphone era indispensável à proposta estilística, nesta história acerca dos bastidores do basquete norte-americano, não é. E não pense que isto é ruim: a decisão de Soderbergh em narrar uma trama convencional através de lentes inusuais é como um convite para que artistas desconhecidos experimentem e levem adiante projetos para os quais, contrariamente, mal obteriam o financiamento.
Enquanto Soderbergh demonstra como melhor aproveitar o estágio da arte tecnológico, ele também conta a história do agente esportivo Ray (Holland), no meio do entrave que ameaça o basquete norte-americano: a associação dos jogadores, representada por Myra (Sohn), sonha com uma fatia mais significativa do bolo de lucros e negocia com os dirigentes, representados por David (MacLachlan), que ambicionam contratos maiores com empresas exibidoras. Quem perde com esta interminável negociata são os jogadores novatos, como Erick (Gregg) e Umber (Prescott), impedidos por contrato de disputar partidas e, portanto, de obter salário e a renda atrelada a patrocínios e direitos de imagem que não possuem. Mal desconfiavam que “A NBA é um negócio”, um balcão moderno de escravos ou um meio de retirar o poder dos negros dentro das ligas comunitárias e controlar o esporte onde eles mais se destacam, alimentando toda uma indústria bilionária e enriquecendo a elite branca nos camarotes.
Dentro desse sistema, Ray atua com inteligência e respeito às origens, sacrificando parte de suas comissões para criar o fundo de emergência que permite que seus atletas respirem. Ao mesmo tempo, é também astuto para pensar tantas casas adiante dos demais jogadores dos bastidores, os quais ainda manipula com frequência, na expectativa de furar o bloqueio da liga o mais cedo possível. Não é a toa que Ray não permanece inerte, e parte significativa da narrativa é contada pelo movimento constante do agente de um lado para o outro, rumo a encontros dois a dois ou reuniões a portas fechadas, que somente trocam o fluxo físico pelo de palavras. E se pensávamos que estávamos acompanhando com a vista privilegiada e sem segredos os passos de Ray à medida que ele caminhava, o roteiro simples e eficaz de Tarell Alvin McCraney (co-roteirista de Moonlight: Sob a Luz do Luar) acrescente um algo a mais na maneira como manuseia sua cronologia.
É mérito do roteirista, ainda, a maneira como enfrenta o racismo e machismo institucionais por dentro e com objetividade, sublinhando os tratamentos depreciativos costumeiramente adotados dentro das empresas (mulheres são tratadas como garotas, por exemplo). E apesar de a utilização do pacote fechado para ilustrar a catarse de determinado personagem parecer clichê, seu conteúdo inesperado e, sobretudo, a forma como Ray anteviu o real destinatário não o são.
Enquanto isso, Steven Soderbergh na figura de seus heterônimos Peter Andrews (diretor de fotografia) e Mary Ann Bernard (“montadora”) embeleza a narrativa com seus filtros de cor (o azul das externas, o amarelo das internas ou o vermelho na sauna) e confere-lhe o ritmo de um jazz ou soul, com pausas nos instantes documentais com entrevistas com ex-novatos e hoje destaques da NBA.
O diretor ainda é antenado em ilustrar o funcionamento das redes sociais nas mãos de publicitários, transformando cada declaração de seus atletas na polêmica do momento, ou ao explicar como os negros podem recuperar o domínio do esporte na era das redes sociais. De quebra e além de inspirar cineastas, Steven Soderbergh encheu-me de vontade de ler A Revolta do Atleta Negro, a Bíblia do esporte escrita por Harry Edwards.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.