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A Mula

116 minutos

A partir do artigo do New York Times escrito por Sam Dolnick, a respeito de Leo Sharp, ex-floricultor octogenário e veterano da 2ª Guerra Mundial, que transportava drogas para o Cartel de Sinaloa, o roteirista Nick Schenk (dos abaixo da média Gran Torino e O Juiz) pôde rechear com factoides, dramas rasos e muitos clichês a trajetória do rebatizado Earl Stone (Eastwood que, aos 88 anos, também está detrás das câmeras). Era melhor se permanecesse fiel à história real, o que apenas consegue pelos primeiros 30 minutos.

A trama inicia quando Earl ainda era um premiado produtor artesanal de lírios, ainda que não próspero o bastante para trocar de caminhonete. O senhor estava a 12 anos de a internet, ou melhor sua incapacidade de se adaptar aos tempos modernos, jogar a pá de cal sobre o trabalho em que dedicou toda sua vida e em razão do qual sacrificou o relacionamento e convívio familiar. Desamparado, falido e sem-teto após o banco despejá-lo de sua casa, Earl vale-se do histórico de motorista exemplar (“nunca tomei uma multa”, gaba-se com orgulho) e do passado como ex-combatente na Guerra da Coreia (esta, uma licença dramática inofensiva) para iniciar um bico que parece fácil: transportar mercadorias de lá para cá. A bolada que recebe pelo serviço e o sentimento de Robin Hood que começa a florescer dentro de si, já que costuma ajudar aqueles ao seu redor, logo o capacitam a se tornar o mais eficiente mula do cartel chefiado por Laton (Garcia). Afinal, quem desconfiaria de um senhor praticamente nonagenário, não é mesmo?

Entretanto, da mesma forma que a trama reconhece a importância da idade como disfarce necessário para o sucesso da operação, também deveria admitir as consequências disto no desenvolvimento do protagonista. Que, diferentemente do Leo Sharp em que se inspirava, é tomado como um galanteador nato. Se não provoca estranhamento sua cantada a um grupo de mulheres na premiação inicial (“o concurso de beleza é no terceiro andar”, afirma antes de presenteá-las com lírios) ou mesmo o fato de ser disputado para dançar, o roteiro extrapola quando envolve Earl não em apenas um, mas dois ménage a trois!

Para piorar, Nick Schenk tem a necessidade patológica de pincelar a imagem da tolerância sobre o rosto de Earl e, consequentemente, de Clint Eastwood, que já esbravejou uma parcela relevante de comentários intolerantes e que tenta desenhar seu mea culpa cinematográfico tomando por desculpa a idade avançada e a consequente perda do filtro, como oportunamente cita Colin (Cooper). Mas, é no mínimo embaraçoso assistir ao cineasta apelar a cenas como o socorro mecânico a uma família negra, o encontro com motoqueiras homossexuais e a sequência em que Colin e Trevino (Peña) interpelam um motorista hispânico antes de este começar a balbuciar a respeito das chances de morrer em uma blitz e que estes são “os cinco minutos mais perigosos de sua vida”, isto porque além de tais momentos não interferirem em nada no desenvolvimento da narrativa, tampouco ajudam Clint, pessoa, a diminuir a mancha que existe sobre si mesmo. E mesmo que contribuíssem nisto, por mais que Earl seja o alter-ego de Clint na maioria do tempo, a narrativa não seria o fórum adequado para tais desculpas públicas.

Como diretor, Clint também está longe de seus melhores dias. Repare em toda a sucessão de eventos antes de Earl ser parado, pela primeira vez, por um patrulheiro de estrada: “fique de olhos abertos” e “dirija com cuidado” são as frases ditas por mexicanos que não haviam feito recomendação alguma a ele até então; depois, a trilha sonora troca subitamente do jazz e folk a temas de suspense, até Earl olhar no espelho central e enxergar algo suspeito. Não há como ignorar a sensação de amadorismo que a sequência desperta, especialmente se considerarmos que Clint já comandou diversas obras-primas, como Os Imperdoáveis, Menina de Ouro e Cartas para Iwo Jima. E nem quero comentar sobre a cena em que Earl suborna um policial com, pausa, pipocas…

E por mais que a reputação de Clint Eastwood tenha contribuído para a reunião de um elenco admirável, minha percepção é de que a maioria dos personagens poderia ser interpretada, sem prejuízo algum à narrativa, por quaisquer atores / atrizes, pois aqueles tipos unidimensionais e caricatos não exigem nenhum talento por parte de seus intérpretes para justificar sua presença. Se me referi a maioria, em vez de todos, é porque Dianne Wiest é a exceção, e oferece uma performance doce, delicada e tocante como a ex-esposa de Earl.

Já Earl, bem, estamos diante do ator que herdamos dos nossos pais e avós: uma lenda viva do cinema e confiante em seu talento discreto a ponto de transformar, com uma espiadela, Earl em cúmplice, em vez de vítima do cartel mexicano. Em vez da rabugice de seus papéis passados, uma inédita descontração enquanto atravessa estradas norte-americanas, cantarolando canções atemporais (como ele próprio é), conquistando a simpatia dos criminosos ao seu redor e usufruindo o conforto financeiro que jamais possuíra, permitindo que Earl seja mais complexo do que o roteiro de Nick Schenk a princípio idealizou.

É o resultado da atuação inteligente de Clint Eastwood que, embora esteja menos eficiente detrás das câmeras do que costume, ao menos transforma A Mula em um divertimento passageiro acerca de seu fato real. Este sim, incrível e surpreendente.

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