Um artista jamais compreenderá, com exatidão, o que movia determinado personagem-real, e parte do prazer de obras biográficas como Vice está também em captar qual a percepção do cineasta a respeito de seu biografado e o que isto revela sobre quem está detrás das câmeras. Assim, um dos aspectos que mais me incomodou nesta sátira política sobre o ex-vice-presidente Dick Cheney foi a desistência do diretor, roteirista e produtor Adam McKay – indicado ao Oscar em todas as categorias – em tentar compreendê-lo e retratá-lo o mais fidedignamente possível. Respeito humildade, não covardia, nas palavras do próprio autor ditas através do narrador onisciente de ser impossível entender o que motivava Dick. É um mistério que permanecerá pendente no ar, pois Adam McKay preocupa-se em responder somente a uma pergunta, justo aquela feita pelo caricatural Donald Rumsfeld de Steve Carell: “Como você se tornou um babaca insensível?”.
A resposta é simples: poder.
O roteiro escrito por Adam McKay procura revelar isso condensando cerca de meio-século de atividade política de Cheney (Bale) em 131 minutos, alternados entre o presente da narrativa, logo depois do atentado de 11 de setembro e da decisão executiva do vice-presidente que levaria os Estados Unidos às guerras no Oriente Médio, e o passado, em uma espécie de história de origem com a ajuda inestimável e indispensável de sua esposa, Lynne (Adams, indicadas ao Oscar como prêmio de consolação pela esnobada por A Chegada). Tantos eventos, que vão desde Nixon até George W. Bush, permitem somente mapear a superfície de quem era Cheney, comprometendo também o desenvolvimento das figuras que, ao seu redor, gravitam: Bush (Rockwell, impagável), Powell (Perry, perdido), a filha Mary (Pill). Também há figurações e participações menores de atores renomados com função nula, como é o caso de Eddie Marsan ou Naomi Watts, que serve como um curioso repeteco da participação de Margot Robbie em A Grande Aposta.
A sensação é a de que Adam McKay imaginou que poderia reprisar com o mesmo sucesso o estilo da comédia sobre a Crise Econômica de 2008, quando na verdade mais parece que o diretor não encontrou a abordagem mais adequada para encarar a biografia. Se naquela, a direção era desenvolta e eficiente em retratar histórias paralelas e eficiente em ilustrar os conceitos do mercado financeiro que não compreenderíamos de forma diversa, aqui mais parece preguiça que respinga em nós, espectador. É como se as imagens (por exemplos, as cenas reais das guerras) que complementam os momentos em que Dick reflete, em silêncio, com a mão sobre a boca ou pontuam as consequências de seus atos substituíssem a nossa imaginação e sua habilidade em preencher essas lacunas. Ou seja, Adam McKay não tenta apresentar quem era o político, mas, a partir de suas ações, sua versão dele, o que como já comentei, ele confessadamente não compreende.
Há acertos, como os enquadramentos maquiavélicos pelo diretor de fotografia Greig Fraser, que enchem o rosto de Christian Bale com sombras que parecem extensões dos cômodos onde este despacha o futuro do país e de seus cidadãos, ou rimas visuais simples e eficazes, como a dos pés inquietos de dois personagens em situações completamente antagônicas. Por outro lado, por mais que a montagem de Hank Corwin confira um ritmo invejável e veloz à narrativa, ela não consegue socorrê-la na hora de costurar as linhas temporais ou em mitigar seu caráter episódio, incapaz de revelar como um jovem beberrão e irresponsável tornou-se, por bastante tempo, o homem mais poderoso da política norte-americana. E convenhamos, a montagem do meme wazzup é um tiro no pé da já combalida narrativa, até como forma de revelar que Adam McKay não entende a dimensão do que está tratando.
Ao menos, podemos agradecer por Christian Bale, apto a elevar a biografia bem além que a sua mediocridade permitiria. Sua disciplina e dedicação ao personagem são conhecidas do público, sobretudo por maltratar (mais uma vez) o próprio corpo em nome da arte (tendo engordado cerca de 20 quilos) mas também por mimetizar os trejeitos do político, como sua maneira de andar arrastando-se e sua voz monocórdica tediosa. Mas se qualquer ator talentoso e comprometido pode personificar uma figura real (viu, Rami Malek?), Bale mostra que é ainda mais eficiente quando livre das amarras para compô-lo como melhor entende. Repare os tiques do ator em ajustar o terno com os ombros como sinal de seu desconforto, apenas para o caimento tornar-se mais natural à medida que a política começa a correr em seu sangue. Isso sem esquecer os muitos significados dados a seus grunhidos e humms ou o peso de sua respiração ofegante e cansada, como uma maneira de simbolizar o peso da responsabilidade que colocou sobre si mesmo quando avocou (ou melhor, usurpou) o poder para si.
Bale escapa ileso da narrativa, é verdade, mesmo quando incapaz de provocar empatia no público, e a tentativa de Adam McKay em preencher esse elo perdido apelando a sua filha homossexual com a intenção de mostrar que o político (ainda) tinha coração, somente não é frustrada graças ao desfecho bem amarrado a ponto de perdoarmos a bagunça do restante da narrativa. A revelação da identidade propriamente dita do narrador (“Nós somos parentes, mais ou menos”), a justificativa para a inserção do divertido final falso e a função também simbólica do transplante de coração proporcionam prazeres singulares cinematográficos e metalinguísticos que passam pela quebra da quarta parede no epílogo à representação mais fiel de ter o coração arrancado do peito.
Uma saída elegante para pontuar o retrato da escalada do conservadorismo republicano ao poder norte-americano. Uma que teve como presença constante o homem que ajudou a reduzir os impostos dos super-ricos (onerando os mais pobres), afrouxou regulamentações para as grandes corporações (permitindo que elas explorassem… os mais pobres), ignorou os alertas do aquecimento global (rebatizado de mudança climática, termo menos radical), e provocou centenas de milhares de mortes desnecessárias com pretextos falaciosos, um sujeito que não tem medo de olhar dentro dos nossos olhos e falar que fez tudo isso por nós.
… e pela Halliburton, claro, de quem embolsou centenas de milhões de dólares em todo o processo. É, política não é para os fracos, mas é curioso como tende a atrair moleques alcoólatras, brigões e sem talento para nada além de manipular o povo em torno de seus próprios interesses.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.