Crítica sem spoilers
Após vencer o Oscar de melhor roteiro pelo estrondoso e merecido sucesso de Corra!, o diretor, roteirista, produtor e também ator Jordan Peele superou com honra e mérito o que os norte-americanos apelidam de sophomore jinx, algo como azar do segundo ano ou, neste caso, do segundo filme. Em Nós, Jordan administrou a mesmíssima dose de tensão, agonia e surrealismo social vistos antes, mas com o dobro de significados e símbolos espalhados ao longo da narrativa alegórica, ligeiramente superiora à do antecessor.
A trama, que parece tirada de um episódio de Além da Imaginação, série que Jordan Peele está trazendo de volta neste ano, começa em 1986 num parque de diversões, quando a jovem Adeleide se perde dos pais dentro de uma sala de espelhos, onde encontra sua doppelgänger, o duplo de que tratava Fiódor Dostoiévski em um de seus livros mais famosos. As consequências deste encontro são mantidas em segredo e implicam em alterações comportamentais da garota, que inicia um acompanhamento terapêutico com psicólogo. O roteiro, então, salta para o tempo presente quando Adelaide (Nyong’o) e sua família (Duke, Joseph e Alex) retornam a mesma Santa Cruz para um feriado em família, oportunidade em que passam a ser aterrorizados por versões, a princípio malignas, deles próprios.
Quem somos nós é o mistério que cerca a narrativa, que obedece, por boa parte do tempo, as regras do subgênero do terror invasão à domicílio. Isto implica no desejo dos Wilson em conhecer o propósito daqueles estranhos, autodenominados Acorrentados, antes de desenrolar a violência propriamente dita, dirigida com eficiência por Peele com apoio da trilha sonora de Michael Abels, intensamente angustiante como a ideia de pisar em alfinetes ou cacos de vidro, e da seleção de canções diegéticas como Good Vibrations, dos The Beach Boys, a fim de o contraste necessário com cenas sanguinolentas.
Tudo funciona ainda melhor porque Lupita Nyong’o oferece uma performance excepcional, sobretudo como a duplo Red, a única do bando capaz de se comunicar além de grunhidos. Seu comprometimento com ambas personagens reforça o conceito da trama de que a alma é como um cordão umbilical que une duas pessoas, originalmente iguais, mas diferenciadas a partir das experiências a que foram submetidas no correr da vida. No patamar da atriz vencedora do Oscar por 12 Anos de Escravidão, estão os jovens Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, formando um quarteto que seria sólido se não fosse por Winston Duke. Não que o M’Baku de Pantera Negra não seja talentoso, e sim que Gabe não consegue dosar o senso de humor inconveniente e desnecessário, especialmente quando a situação adentra em seu estágio mais ameaçador, no defeito que mais salta os olhos no roteiro de Jordan Peele.
Que, entretanto, acerta em cheio na utilização de metáforas que reforçarão os significados da narrativa. Não que você precise decifrar toda a simbologia no intento de poder apreciar o resultado final (oi, coelhos?) ou compreender que a narrativa funciona tanto no nível social, quanto existencial. Este, ao proporcionar a Adeleide a oportunidade de enfrentar seu trauma de infância, numa caminhada literal em direção ao porão de sua consciência no terceiro ato; aquele, ao enxergar o conflito como uma forma de Morlocks versus Elois (para quem leu A Máquina do Tempo, de H. G. Wells), ou seja, o confronto entre aqueles que tudo têm – casa luxuosa na praia, carro Mercedes, barco de luxo – contra aqueles que mal tinham autonomia para escolher quem seriam seus parceiros ou filhos ou sequer como se movimentariam, eis a explicação do nome Acorrentados. É uma consequência da abismal desigualdade da sociedade capitalista, aqui retratada com o artifício da psicologia.
Assim, por mais que haja como aproveitar Nós somente como o ótimo filme de terror que é, com um daqueles desfechos que funciona como convite para revisitar a produção, a narrativa é ainda melhor quando começamos a tentar interpretar seus símbolos. É o que farei a partir de agora, deixando-as avisados que haverá MUITOS spoilers pela frente.
Nós ou Eles?, seção com spoilers
Em monólogo expositivo, apesar de necessário para que o roteirista compartilhe o escopo de sua visão autoral com o público, descobrimos quem são os Acorrentados: cópias idênticas dos moradores da Superfície, com os quais compartilham a mesma alma. São humanos (Somos Americanos, comentam) renegados a habitar nos milhares de túneis sem propósito de que tratam os letreiros iniciais e que agem como marionetes dos duplos, sem autonomia e vontade própria. Iguais a tesouras, portanto, o instrumento do crime usado por aqueles, metades iguais conectadas por um ponto comum e condenadas a se movimentarem em sincronia.
No clímax, descobrimos que, no encontro na sala de espelhos (sugestivamente denominada Encontre Você Mesma), Red trocou de lugar com Adelaide: esta mergulhou no submundo dos Acorrentados, o que explica porque é a única deles capaz de falar e se tornou a figura de liderança que iniciou a revolução, enquanto aquela passou a experimentar um desconforto e deslocamento naturais ao emergir à superfície (Eu não gosto de conversar, confessa para a personagem de Elisabeth Moss). Interessante observar a mudança no figurino de quem pensávamos ser Adelaide – do branco prístino inicial, a blusa termina manchada do mesmo vermelho dos Acorrentados -, o fato de ser ela a bailarina, não sua original – o que comprova que excelência e talento não escolhem onde nascer, apenas precisam ser cultivados – ou de que passa a maior parte da trama com as mãos algemadas, uma pista da reviravolta e também um aceno ao projeto Mãos Dadas pela América.
Ocorrido justo em 1986, o Mãos Dadas pela América foi a ocasião em que milhões de pessoas deram as mãos em favor dos que passavam fome e não tinham onde morar. Era um gesto simbólico, embora com nenhum efeito prático, e sua repetição no final funciona tanto como uma ironia – afinal, mesmo após quebrarem suas correntes, ainda agem como Acorrentados, reprisando o que os habitantes da Superfície já fizeram -, quanto como uma mensagem direta de que quem deve acabar com as décadas de descaso social são exatamente aqueles que sofreram seus reflexos, não aqueles que deles se aproveitam.
Aí entra a citação Bíblica do livro de Jeremias 11:11, cuja numeração é repetida insistentemente. O trecho está dirigido àqueles que não ouviram a palavra de Deus e permitiram que a terra virasse o mundo desigual e injusto que hoje é – em linhas gerais, aqueles que mais usufruem o poderio do poder econômico em detrimento de todos os demais. Sobre todos esses, Deus trará um mal / calamidade de que os ímpios não poderão escapar.
De todos, contudo, o mais intrigante são os coelhos. Em entrevista, Jordan Peele confessou seu medo irracional do que chamou serem os psicopatas do reino animal. A explicação a respeito da presença dos inofensivos bichinhos é oferecida casualmente na narrativa – o alimento dos Acorrentados -, cuja participação é frequente: a pelúcia de Adelaide, a estampa da camisa de Zora e as gaiolas vistas no início e abertas no final. Para mim, coelhos ainda tendem a retratar a fertilidade, o que neste caso poderia (eu disse, poderia) significar a prosperidade gananciosa daqueles que habitam na Superfície e toda uma linha interpretativa a partir daí.
Entretanto, o mais intrigante sobre Nós é como, a princípio, tendemos a parear com os habitantes da Superfície, nossos iguais, e até vibrar quando um deles tritura um dos Acorrentados no motor de sua lancha. A partir daí, nosso sentimento começa a vacilar, como se uma parte de nós entendesse, mas não concordasse com a investida violenta, até chegar o momento em que descobrimos quem é quem e nossa torcida diluir de vez. Afinal, você é Nós ou Eles?
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.