“Si vis pacem, para bellum” é um brocardo latim que significa “Se queres a paz, prepara-te para a guerra” e é isto que proporciona a terceira parte da saga do assassino apelidado de Bicho Papão: guerra.
Com uma letalidade ainda mais impressionante do que a apresentada no excelente episódio anterior, o excomungado e marcado para morrer John Wick (Reeves) busca, nos aliados que lhe restam, formas de sobreviver tempo suficiente para provar ao Ancião, o pináculo da organização que participava, que ainda pode reingressar nos quadros depois de assassinar um membro da Alta Cúpula no Hotel Continental.
Entretanto, o argumento nunca foi o ponto forte da série, a considerar “De Volta ao Jogo” e “John Wick 2”. Agora, escrito a oito mãos por Derek Kolstad, Shay Hatten, Chris Collins e Marc Abrams, o roteiro é a mais sofisticada desculpa para sequências de ação originais e espetaculares, que desafiam o paradigma do cinema de ação contemporâneo e empurram-no adiante.
Não que o texto não tenha defeitos, em particular na forma como certas atitudes e decisões embaçam as motivações dos personagens e desrespeitam sua personalidade estabelecida em filmes anteriores, mas é relevante notar que, em nome da clareza, a Organização tornou-se uma entidade concreta, com hierarquia definida, filiais e afiliadas e até mesmo sua casa da moeda e processo judicial. A noção do todo permite que as ações de John Wick tenham um caráter menos abstrato e também apontam até onde ele precisará ir para ter a paz que busca, sendo ainda a cola que mantém íntegro os set-pieces de ação.
E quem me lê há mais tempo, sabe como aprecio sequências em que podemos apreciar todo o esforço criativo envolvido. Diferentemente daquelas caracterizadas por múltiplas tomadas e fragmentos que, depois, são montados conjuntamente com um ritmo frenético que beira a incompreensão – cortesia de diretores inexperientes ou inseguros em seu próprio trabalho -, as de John Wick, iguais as dos clássicos de ação modernos (“Missão: Impossível” ou “Operação Invasão”), permitem que o público verdadeiramente acredite que Keanu Reeves, Halle Berry ou Mark Dacascos são máquinas de matar. A quantidade adequada de cortes transparece a importância da coreografia, ensaios e, evidentemente, comprometimento dos atores, que não são mais garotos (Keanu e Mark tem 55 anos; Halle, 53), em conferir verossimilhança as suas habilidades. A título de comparação, lembre a cena de “Busca Implacável 3” em que Liam Neeson pula uma cerca com ajuda de uma dezena de tomadas diferentes.
Não existe nada mais que o fã do gênero de ação deseje além de sequências planejadas com criatividade e executadas com excelência, como a envolvendo facas arremessadas para lá e para cá ou outra na cidade de Casablanca, em que o público compreende, sem dificuldades, a geografia da cena, de onde surgem os desafortunados capangas que morrerão com um tiro certeiro na cabeça e atrás de quais obstáculos John, sua aliada e seus mortais cachorros estão escondidos. Assim, por mais que existam momentos em que a suspensão da descrença é colocada à prova quase no limite de espantar o espectador do universo diegético com uma mentira incompreensível, o saldo é sempre positivo porque, desde o início, passamos a crer no retratado pela narrativa.
Os méritos são do diretor e coordenador de dublês Chad Stahelski, que herdou a cadeira de David Leitch (“Deadpool 2” e “Atômica”), porém ignorar a contribuição do diretor de fotografia Dan Laustsen (“A Forma da Água”) seria uma tremenda injustiça. Laustsen estabelece um esquema de cores vivíssimas e luzes néon absortas em sombras: enquanto as primeiras exasperam belissimamente o irrealismo fantástico das façanhas de John Wick, as últimas relembram que estamos falando do submundo de assassinos. Além disto, Laustsen implementa uma cena tecnicamente dificílima e que provocaria desespero na maioria dos fotógrafos, a transcorrida em um ambiente formado exclusivamente por vidros.
E, ainda que não curta o tom auto-congratulatório que existe no final desta cena da parte de Mark Dacascos, “John Wick 3: Parabellum” mereceu o direito de se envaidecer. Até porque não é todo dia que se assiste a filmes que empurram, metros adiante, um gênero cinematográfico.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.