Enquanto o diretor Gareth Edwards desperdiçou três quartos da duração de Godzilla (2012) com dramas humanos rasos e pouco envolventes, uma trama cientificamente enfadonha e uma narrativa presunçosa e escura para, apenas no quarto final, proporcionar o que os fãs estavam querendo assistir, a lutas entre kaijus, na continuação intitulada Godzilla: Rei dos Monstros, seu substituto, Michael Dougherty, mostra-se mais atento e hábil em amarrar e balancear os segmentos humano e monstro para que nem fulano critique-a por se tratar de um thriller de ação sem roteiro, nem cicrano, por desperdiçar seu personagem-título em um sentimentalismo novelesco.
Mas isso não significa que o roteiro que co-escreveu ao lado de Zach Shields não tenha sua parcela de tolices e conveniências, ao revelar que, junto de Godzilla, King Kong e os Motu do anterior, há uma quantidade de 17 monstros, batizados de titãs (no lugar da denominação Organismos Terrestres Gigantes não Identificados), criaturas preexistentes à humanidade e que deram origem à vida no planeta Terra graças à radiação que emanam (?!). Sua presença é monitorada pela corporação Monarca, que passa por uma sabatina no Congresso Nacional (uma CPI, nos moldes brasileiros) para decidir se é o exército quem passará a gerir suas descobertas e qual o impacto disto em toda sua operação. Enquanto isto, a Dra. Emma (Farmiga, que é uma atriz competente mesmo debaixo d’água) enfrenta um dilema moral ao ser sequestrada por ecoterroristas interessados em utilizar um instrumento que desenvolveu para despertar os titãs, em especial o denominado Monstro Zero (a versão do Megatron da narrativa), para que possam devolver à Terra o meio ambiente equilibrado antes de nós o destruirmos.
Com uma alegoria que reconhece a pertinência da do original japonês, lançado em 1954, a narrativa agora recorre a uma preocupação contemporânea (qual e como será o mundo que deixaremos para as próximas gerações?) e recicla uma motivação de blockbusters recentes: a restauração do equilíbrio natural através da aniquilação da espécie humana (plano que Thanos e o Mestre dos Oceanos de Aquaman tentaram levar adiante). Enquanto faz isto, a narrativa enxuga os dramas pessoas ao mínimo necessário (o luto dos Russell pela perda do filho caçula) e insere uma óbvia, embora curiosa metáfora sobre a religião antes de começar a apostar naquilo por que a maioria pagará seu ingresso.
O resultado desta vez não decepciona, sobretudo quando Godzilla, Ghidorah, Rodan e Mothra começam a trucidar as cidades e uns aos outros. Méritos à direção por saber apostar no ponto de vista humano, com a intenção de mergulhar o espectador diretamente na ação. Note como o envolvimento é acentuado quando deixamos de observar, confortavelmente, à distância (objetivamente) e passamos a participar diretamente através dos olhos e vivência dos personagens (subjetivamente). Não só a percepção dos monstros e de seu tamanho é modificada, como ainda a sensação de ameaça e perigo a que estão submetidos os membros da família Russell. E, por mais que a fotografia permaneça um tom mais escuro do que o desejado (o 3D piora a experiência graças aos óculos) e a montagem prejudique sutilmente o desenvolvimento de certas sequências, o resultado final é bastante satisfatório dentro de sua proposta.
Muito devido ao estabelecimento e desenvolvimento das motivações do núcleo principal do elenco, e também de como a trama não pisa no freio para retratar as consequências morais de personagens que sacrificam o que prezam em troca do que acreditam ser um bem maior. Se Vera Farmiga evidencia o desconforto ético de quem precisa tomar decisões difíceis e irreversíveis, Kyle Chandler humaniza, apesar do distanciamento, a dor do pai que perdeu a família. Já Millie Bobby Brown (de Stranger Things) é eficiente em pender de lá para cá e, mesmo assim, manter íntegro seu comportamento. Entretanto, exceto o indicado ao Oscar Ken Watanabe, o restante do elenco coadjuvante é dispensável ao nível de sequer sentirmos falta quando um ou outro some, ou, para por em termos monstruosos, é esmagado. Assim, para que contar com atores como Sally Hawkins, Charles Dance, David Straithairn e Zhang Ziyi se o roteiro não lhes proporciona nada senão meia dúzia de diálogos xaropes?
Chega a ser involuntariamente cômica a solenidade com que Ziyi refere-se a Ghidorah (“é como se as pessoas tivessem medo de escrever sobre ele”), tanto quanto a cena em que cada cientista tenta ‘lacrar’ com uma linha de diálogo relevante, durante a descoberta de todo um templo submerso. “Parece egípcio… ou romano”, diz um, como se tais civilizações fossem confundíveis mesmo por um leigo. Que ninguém ouse mencionar Atlântida é, de fato, uma surpresa! Mas, ainda que a mitologia dos titãs desande às vezes, não há como ignorar a forma eficaz com que a narrativa debate fé e religiosidade a partir da relação de Mark com Godzilla. Culpá-lo pela morte do filho é o mesmo que fazem os pais ao acusarem Deus de subverter a ordem natural, e a trama encontra um arco dramático interessante ao forçar o primeiro a confiar, no lagarto que tem deus no nome, a própria salvação da humanidade, em uma redenção íntima que Kyle Chandler retrata com sucesso, bem como faz Ken Watanabe ao realizar uma oferenda à divindade que adora.
Contudo, mesmo que você não se importe com metáforas da bomba atômica ou do ambientalismo / religiosidade, saiba que o que Godzilla – Rei dos Monstros oferece mesmo é o prazer de assistir e, mais importante, se importar com monstros digitais digladiando-se para saber quem reinará sobre os escombros de sua vendeta particular. Se existe algo mais que esta produção precisaria realizar para cativar o público, desconheço.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.