Exibido no Fórum do Festival de Berlim deste ano, o costarriquenho “El Despertar de las Hormigas” (O Despertar das Formigas) narra uma história acessível, universal e realidade de parte das mulheres dentro do regime patriarcal que lhes impõe a quádrupla jornada: mãe, esposa, dona de casa e participante na renda da família. Já começamos a entender a rotina de Isa (Valenciano) na festa típica de família, em que os homens bebem além da conta e se divertem no terraço enquanto as mulheres permanecem dentro da cozinha, preparando café ou finalizando a cobertura do bolo. Não bastasse isso, Isa ainda é interrompida e criticada com frequência pelo marido, Alcides (Gomez), que insiste em ter outro filho, além de suas duas garotas, e seus parentes, que reclamam da espessura da cruz desenhada sobre o bolo.
Se este é o retrato dos finais de semana, o que comentar sobre a maçante rotina de segunda a sexta-feira? Basta reparar como, se não bastasse precisar servir a refeição de todos, Isa é a última a comer (sozinha) no café da manhã, e mal tem tempo de trocar a roupa no término do dia depois de preparar as filhas ao colégio, cortar pedaços de manga para o marido – nem isto ele consegue fazer direito – e realizar os serviços de costura que contribuem ao caixa do lar. Nós, homens, dificilmente compreenderemos o significado em ser como a Isa, e não ter seus anseios e frustrações escutados na mesa do almoço sem o manterrupting do marido. É por isto que a atividade de costura desempenha papel crucial na autonomia e independência da protagonista, pois é neste instante que se sente valorizada e retribuída (próximo) à altura do que esperava.
Esta constatação chega de forma natural na narrativa, com auxílio da atuação minimalista de Daniela Valenciano. Ela é apta a retratar a apatia e esmorecimento da personagem e seus medos, representados pela queda acentuada de cabelo e pela presença de insetos predadores de formigas – em que está incluída -, e ilustrar como, ao readquirir momentaneamente a autonomia da própria vida com a aquisição de tecidos que lhe farão sentir melhor consigo mesma e de anticoncepcionais – a forma de readquirir o controle do próprio corpo -, sua felicidade transborda e como isto é saudável para sua família. Ao menos até Alcides tomar o controle através do gesto de mudar a posição sexual, daquela que satisfaz a esposa àquela que lhe impede mexer-se.
Se sentimentos repulsa por Alcides, a explicação está na composição competente de Leynar Gomez, com olhares reprovadores mesmo com o tom de voz ponderado. Curiosamente, o marido não é necessariamente uma pessoa ruim, mas uma que está tão enraizada dentro da sociedade machista que começa a produzir frutos podres. Ao ser requerido para ajudar Isa a montar a mesa de jantar, Alcides mal sabe onde qual o paradeiro dos pratos, talheres e taças porque jamais precisou aprender em quais armários estavam guardados. Isto não significa que não reprovemos as ações e comportamento do marido, apesar de devemos reconhecer que estão mais atrelados à criação do que à índole, tornando os questionamentos propostos pela narrativa mais complexos do que imaginaríamos a princípio.
Além de proporcionar uma história simples, mas bastante ramificada, a diretora e roteirista Antonella Sudasassi também é excelente na direção das atrizes-mirins que interpretam as filhas de Isa e Alcides. São crianças espontâneas, que agem, brincam, sofrem e choram como crianças, não iguais a adultos. A insistência em apresentá-las no primeiro plano da narrativa significa que a catarse de Isa no terceiro ato não trará, verdadeiramente, as modificações abruptas que desejaríamos em sua rotina: ela continuará desempenhando jornadas múltiplas, talvez ou não com o auxílio do marido, e poderá colher os louros de sua revolução pessoal. Entretanto, como nações em estágio de transição do regime opressor à independência, as consequências apenas serão sentidas pelas gerações seguintes, a começar por um mero ato de cortar o cabelo.
Crítica escrita durante a cobertura do 47º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.