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Pacarrete

Pacarrete

97 minutos

Arte é magia. À medida que o tempo passava nesta comédia biográfica cearense, recordava da letra da canção de Mama Cass Elliot, Make Your Own Kind of Music, e como esta me ajudava a encarar a trajetória da personagem-título: uma bailarina clássica e professora de dança aposentada que sonhava em organizar uma exibição para comemorar o bicentenário da cidade de Russas, no interior do Ceará.

Ninguém pode dizer a você,

Que só há uma canção que valha a pena cantar,

Eles podem tentar te convencer,

Pois eles ficam perturbados em ver alguém como você.

Pacarrete (Cartaxo) ganha o coração do espectador desde o instante em que abre a porta de sua casa e começa a dançar ao mesmo tempo em que tenta manter limpa a calçada, pela primeira de muitas vezes na narrativa. Desbocada, performática e bastante idiossincrática, estas características muitas vezes ganham contornos de grosseria dentro de casa e junto aos habitantes da cidade. Com exceção de Chiquinha (Matos), a irmã, e Miguel (err, Miguel?), o dono de um bar, Pacarrete não tem paciência com todos aqueles incapazes de apreciar o balé, inclusive a secretária de cultura, que inventa desculpas para rejeitar imediatamente sua oferta: “Já estou pensando no meu figurino. O cenário será minimalista. E se tiver uma banda, ficará atrás”, antecipa Pacarrete.

É, que ninguém duvide da capacidade da personagem-título em tirar da cartola a resposta que deixará seu interlocutor calado: “não preciso de macho, tenho minha aposentadoria”, retruca à cantada do bêbado no bar de Miguel. E, entre xingamentos, Pacarrete também exibe, a contragosto, sua vulnerabilidade. Com esta personagem rica em camadas e matizes, a paraibana Marcélia Cartaxo adapta seus maneirismos, sotaque e gírias à da cearense-raiz e proporciona momentos de riso fácil apenas pela expressividade da atuação: “Chiquinha, voltei!”, grita horas após abandonar o lar, como resultado da discussão com a empregada doméstica (Lira).

A comédia é parte integrante à personagem, que repete as expressões mais elementares no idioma francês, de onde também tirou seu nome artístico – aportuguesado de pâquerette ou margarida. É também indispensável para que enxerguemos detrás do verniz da maquiagem e de sua composição altiva e pedante, e encontremos a alma infantil de quem conserva, no ‘camarim’, uma boneca de pano e mantém suas unhas as mais prístinas possíveis. Sem este contraponto cômico, a dramaticidade da segunda metade desequilibraria a narrativa, e Allan Deberton, diretor e co-roteirista, é feliz ao sedimentar o bom-humor, porém sem abrir mão de empregá-lo como atalho para acessar sua personalidade.

Você vai estar em lugar nenhum,

O tipo mais solitário de solidão,

Pode ser um pouco difícil de seguir,

Apenas faça a sua parte, é a coisa mais difícil de fazer.

Engraçado também como “Pacarrete” dialoga com o cenário contemporâneo brasileiro, já que exibe um tipo particular de censura: aquele que veta produções artísticas autorais em detrimento daquelas consideradas, pelo poder público instituído, como as mais vendáveis e de maior apelo público. Ao fazer isto, desvirtua a arte como instrumento de disseminação de múltiplos olhares e expressões, para transformá-la somente em produto comercializável. Neste conceito, o balé inspirado em Anna Pavlova e encenado em antigas fitas VHS não se encaixa na festa como o forró ou sertanejo faria.

Mesmo rejeitada e fotografada por Beto Martins debaixo de sombras que antes não estavam tão evidentes, Pacarrete somente tem a personalidade abalada definitivamente após certo evento na trama. E é simbólico que Allan Deberton retrate esta fragilidade a partir de rimas visuais que nos remetam a ações assistidas no princípio, estabelecendo um paralelo logo a partir da sombra projetada na parede do quarto – a composição mais significativa da direção, dentre tantas outras apaixonantes.

Não bastasse um estupendo elenco – além de Marcélia, Zezita Matos e Soia Lira formarem um trio doméstico tocante e inesquecível, João Miguel confere doçura e afeto à forma como trata Pacarrete -, o design de produção de Rodrigo Frota cria, no interior da casa, um museu vivo de memórias e recordações – confesso que meu olhar buscava avidamente conhecer as irmãs a partir do que conservavam no lar – os figurinos de Christiana Garrido conferiram a solenidade extravagante à protagonista, tornando-a também mais humana.

Você tem que fazer seu próprio tipo de música,

Cantar sua própria canção especial,

Fazer seu próprio tipo de música,

Mesmo que ninguém mais cante junto.

A atuação sublime de Marcélia Cartaxo será, sempre, a primeira lembrança ao pensar neste jovem clássico do cinema nacional, e ao vê-la totalmente mergulhada na personagem sobre uma sapatilha de pontas ou desnuda no quintal de casa, é fácil perceber por quê: a Pacarrete aqui vista é igual a nós, indivíduos que sonham intensamente em compartilhar suas paixões com seus pares. Às vezes, eles têm a fortuita felicidade em encontrá-los. Noutras, não, mas que isto não sirva de empecilho para que dancem seu amor… mesmo que ninguém mais dance (ou aprecie) junto.

Crítica escrita durante a coberta do 47º Festival de Cinema de Gramado

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