Apesar de introduzir personagens realistas em dramas e situações idem, “Vou Nadar até Você” jamais pode ser avaliado pela lente estreita da verossimilhança. Existe, dentro de sua concepção, um conteúdo bastante simbólico, lírico e poético que extravasa com o amor que o diretor Klaus Mitteldorf sente pela história: a de Ofélia (Marquezine), jovem que decide nadar de Santos a Ubatuba, separadas por cerca de 250 quilômetros, para encontrar pela primeira vez o pai (Ketnath), um famoso fotógrafo alemão. A jornada não é avalizada pela mãe (Clais), que também não coloca maiores entraves para que Ofélia percorra o caminho que deseja.
Caso você abrace o realismo como quem agarra o último bote salva-vidas do Titanic, você naturalmente perguntará a si mesmo: por que Ofélia não comprou um bilhete de ônibus? No entanto, esta tarefa não estaria à altura do amadurecimento imposto pela trajetória. Um que existe mais na teoria do que na realidade, pois um dos (vários) problemas narrativos está em como a direção falha em implementar sua pretensão artística. Na água ou fora dela, em frente ou detrás da câmera fotográfica, Ofélia dorme em pousadas ou na rua, pede carona a estranhos esquisitões – um deles é interpretado por Dan Stulbach -, passa fome por ter sido furtada etc, mas estes obstáculos não se materializam como etapas prévias ao crescimento, ou empoderamento, da protagonista. Ao não poder adquirir bebida ou comida, a narrativa somente se restringe à expressão amuada de Bruna sem que haja consequências maiores – na cena imediata, Ofélia, tecnicamente desnutrida, cai no mar. Então de que adianta haver sofrido esta intempérie se não houve o desenrolar de sua impacto.
Igual a este exemplo, muito neste road movie – ou filme de estrada – funciona bem melhor no campo das ideias, do que na prática. À medida que Ofélia progride na missão, encontra personagens que atravessaram a vida do pai, como se estivesse descobrindo-o aos poucos. Se esta estrutura vai ao encontro do que a narrativa deseja, não existe informação que os coadjuvantes podem proporcionar antes que a jovem despeça-se e continue seu rumo, como acontece ao encontrar Suzana (Gallo). Apesar de a dinâmica das duas ser um terreno fértil e mal explorado, é curioso, para não dizer problemático, que a razão por que Ofélia procura a garota pela primeira vez era para encontrar seu pai, Miguel, uma etapa ignorada pelo roteiro logo no momento em que Ofélia está a dois passos do melhor amigo de seu pai.
Sobram perguntas, não respostas ou indícios para que cheguemos a elas. O nome de Ofélia, em referência à pintura do inglês Millais e à trágica musa de Shakespeare que enlouqueceu e se suicidou como consequência da rejeição de Hamlet, não carrega qualquer indicativo para ajudar a desencapar o fio condutor da personagem vivida com sensibilidade por Bruna Marquezine, que ainda mescla inocência e experiência, igual ao título do livro de William Blake. Na realidade, Ofélia serve meramente à finalidade ilustrativa e estética que o diretor almeja, possibilitando-lhe re-imaginar a obra de Millais de forma cinematográfica em certo instante.
Parece que Klaus é mais parecido com Tedesco do que deveria, por estar mais preocupado com as imagens do que com as pessoas, com a forma como as enxerga do que com o conteúdo que proporcionariam caso decidisse mergulhar de cabeça, igual à Ofélia em certo instante, neste aquário de pessoas e decidisse enxergá-las mais de perto. Pelo contrário, na segurança do ‘castelo’ do qual recusa a descer, Tedesco (ou Klaus) prefere acompanhar o retrato de terceiros – tirados pelo aprendiz misterioso Smutter (Pinto, incapaz de envolver o espectador com seu antagonista onipresente de modo caricatural) – ou silhuetas exibidas na mostra de seu trabalho, em vez de sentir carne e osso. E se o personagem eventualmente reconhece este defeito e o remedia, Klaus se mantém à distância, apaixonado pelo trabalho belo da fotografia de Alexandre Ermel.
Com braçadas seguras, mas sem bússola para guiar, “Vou Nadar até Você” nada e morre na praia. Ou melhor, permanece perdido no mar de suas pretensões, inábil em tornar concreto as boas ideias que nortearam o projeto.
Publicação escrita durante a cobertura do 47º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
2 comentários em “Vou Nadar até Você”
…. O pior para mim no cinema nacional é o som que nem sempre é bom como deveria e a falta de legendas ou seja quem é pouco ou muito mouco fica a ver navios, precisa adivinhar o texto e dar tratos à imaginação para entender à contento o que falam.
Uma das coisas que me impressionou negativamente no filme é o absurdo de uma garota, inclusive muito bonita e portanto desejável, não ter nenhuma preocupação com sua segurança pessoal, como foi comentado.