Apesar de namorar com a frieza tecnológica de 2001: Uma Odisseia no Espaço e a reflexão filosófica e humanista de Solaris, é com Gravidade que Ad Astra – Rumo às Estrelas mais se assemelha. Ambas produções usam a jornada como um instrumento para que seus protagonistas enfrentem os traumas do passado que moldaram a sua personalidade resignada e misantrópica do presente – a Dr. Ryan Stone como a consequência da morte inesperada da filha; o Major Roy McBride, do abandono paterno. Esta comparação é mais enriquecedora quando notamos que os diretores Alfonso Cuarón e James Gray seguiram mãos contrárias de uma avenida para lidar com a temática. Se a passiva Ryan precisou assumir o controle da vida mediante o renascimento simbólico até caminhar com as próprias pernas, nesta ficção-científica, o ativo e determinado Roy precisa aprender a deixar o passado encarregar-se dele próprio e aceitar o contato humano, não de uma forma sutil como naquele vencedor do Oscar, mas verbalizada, para que não haja dúvidas, o que não significa que a solução não seja eficiente para este caso.
É que o nosso primeiro contato com Roy (Pitt, em seu melhor papel como protagonista após Se7en, já que o ator costuma mesmo se destacar como coadjuvante) é diante de um confessionário, em que afirma, dentre outras coisas, que apenas tomará decisões lógicas na missão e que não estará sujeito a erros. Promessas que serão desfeitas. Impassível e compenetrado até nas circunstâncias mais adversas, Roy surpreende ao revelar que sua frequência cardíaca permaneceu como se estivesse em repouso durante o acidente na antena espacial, causado por ondas energéticas oriundas de uma espaçonave dada como perdida nos cofins de Netuno. Seu capitão era ninguém menos do que Clifford McBride (Jones), o pai de Roy, e, por esta razão, o Major é enviado numa missão sigilosa a uma base subterrânea em Marte, onde deverá transmitir uma mensagem ao pai e impedir uma catástrofe.
A relação pai e filho é a espinha dorsal da trama construída em torno de detalhes breves, como o close na foto de família do militar recém assassinado como constatação de que este jamais retornará aos que ama, e encastelada dentro dos pensamentos de Roy. Aqui, ele confessa que não sabe se prefere encontrar o pai ou livrar-se dele. Ali, deve aceitar o fato que não conhecia nada sobre ele, isto pouco após o rosto do pai reproduzido de uma transmissão antiga sobrepor-se ao seu. Não é a toa, pois Roy é a cópia espiritual de Clifford. É astronauta porque sonhou, intimamente, em seguir seus passos. É recluso, a ponto de parecer robótico, como um mecanismo de defesa para poupá-lo de dores como a da rejeição na infância. Ao sugerir que alguns homens (e mulheres) não nasceram para a paternidade, mas para ir às estrelas caçar sonhos, a narrativa evidencia sua honestidade brutal e amarga, que está harmonizada, contudo, com a doçura de repetir, sem auxílio de palavras, que Roy não precisa seguir literalmente os caminhos do pai para encontrá-lo em si. Podemos amá-las ou até odiá-las e combinar estes sentimentos de maneira una e indissociável – como Roy faz, numa relação passivo-agressiva cozida em silêncio – e, mesmo assim, reconhecer a essência mítica que estas figuras carregam consigo.
Desta forma, a percepção emocional realista de James Gray é também retratada num futuro não tão distante verossímil, que nada mais é do que um apêndice do que já somos e realizamos hoje. Uma época em que os voos comerciais à Lua – transformada num aeroporto interplanetário onde franquias de alimentação batalham por visibilidade – são comuns, embora com a ressalva capitalista de que um travesseiro e cobertor precisam ser adquiridos a parte… ao custo módico de 125 dólares. A humanidade não melhorou com o tempo. Apenas expandiu seu alcance exploratório e auto-destrutivo a um sistema solar (ainda) sem fronteiras, em que empresas mineradoras extraem o que podem do nosso solitário satélite e piratas ameaçam a segurança de quem lá está. Estes conflitos continuam provocando uma infinidade de catástrofes, igual à ocorrida no malfadado Projeto Lima, enquanto os homens permanecem obcecados em buscar o que não está lá, e morrer por isto, a ignorar o magnífico que a conquista do espaço representa.
Apesar de divergir, em gênero, de tudo o que James Gray já escreveu e dirigiu, a narrativa se encaixa em sua filmografia, em como enxerga a humanidade de maneira pessimista. Somos simpáticos à violência inata, apropriada a primatas ensandecidos no espaço, e agimos iguais a estes diante de uma invasor não-hostil na esperança de neutralizá-lo ao invés de acolhê-lo. Não esperamos a conciliação, só a vitória pela derrota de quem ousar se opor, não importa a maneira como a história decidirá nossos atos. Por isto que, ao lado de Helen Lantos (Negga, em participação breve, mas marcante), Roy surge como um farol de bom senso, apesar de constantemente sabotar a si mesmo e desprezar o contato social (“o espaço sideral, eu entendo”, cita como se desejasse concluir: “de sentimentos, não”).
Tecnicamente, Ad Astra fascina em como incorpora, na edição e mixagem de som, barulhos abafados, ‘escutados’ não por causa dos sons que emanam (que não se propagam no vácuo, como os que faltaram às aulas de física aprenderam em Gravidade), porém (suponho) pela vibração que disparos, explosões, veículos em terreno pedregoso etc provocam no traje espacial e também nas estruturas espaciais. Já a fotografia em película de 35mm de Hoyte van Hoytema (Interestelar, Dunkirk) está em constante mutação através dos cenários, flutuando entre paletas de cores que identificam cada trecho da missão (permaneço boquiaberto com os anéis púrpuros e hipnotizantes de Netuno) e mantendo a granulação da imagem a fim de proporcionar nossa imersão espacial (e também na mente de Roy, pois a predileção por closes é uma constante).
É o casamento entre a técnica cinematográfica e o conteúdo, introduzindo finalmente temas espirituais de forma sábia, a fim de ilustrar como aqueles homens que atestam a presença de Deus a cada decolagem bem sucedida são os mesmos que buscam provas que terminariam por negá-Lo. Olhar em direção às estrelas, portanto, não revelaria o paradeiro de Deus, não nos aproximaria dEle ou encerraria a solidão do protagonista (que sujeito fascinante!).
Olhar para dentro de si, conectar-se com o próximo e retornar para casa, este sim seria um bom começo.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Ad Astra – Rumo às Estrelas”
Este filme de James Gray, protagonizado por Brad Pitt, Tommy Lee Jones e com as presenças “breves” de Donald Sutherland e Liv Tyler, é uma película algo arrastada, lenta no seu desenrolar (muito fora do comum nos dias de hoje), que embora até tenha por tema algo mais terreno, embora praticamente toda a ação do mesmo seja desenvolvida no espaço sideral, pois a viagem do astronauta Roy McBride serve de metáfora para uma espécie de foco no tema da solidão.
Fala-se, aqui, do tipo de solidão humana, em que nos sentimos sós embora rodeados por muita gente, em que nos sentimos diferentes ou desfasados do ambiente ou pessoas que nos rodeiam; pode-se dizer que a procura de vida extraterrestre no vasto espaço sideral, missão de vida do pai de Roy, é aqui a referida metáfora para a solidão humana, onde apenas queremos saber que “não estamos sós no Mundo”.
Primeiro aspecto, a incrível arrogância humana de precisar ir tão longe pra perceber que o que existe de mais precioso sempre esteve perto de você. Segundo, o filme é muito pouco pretensioso e tem um objetivo e uma mensagem bem clara e bem interessante, fugindo daquela trama que são filmes como Interestelar que querem ficar mostrando o segredo do universo. Em terceiro lugar, que fotografia espetacular, os efeitos estão caprichados, a lua esta linda, Netuno incríveeeel! enfim…
É legal ver um filme com essa questão de que realmente a possibilidade de estarmos sozinhos existe e como as pessoas se frustram por não acharem as respostas que queriam por simples crença individual, belo filme p/ o arquétipo hollywoodiano.
Pena o desenvolvimento do filme, a falta de genialidade na realização, e a fraca qualidade psicológica ou emotiva das interpretações, que caso fossem diferentes (para melhor) tornariam esta uma grande obra!
A visão do filme e seus autores é céptica relativamente ao tema da procura de vida extraterrestre, enquanto esperançosa no campo da solidão humana, e este é o principal ponto de destaque nesta película! Filme sútil, sensível e muito bem trabalhado.
Curiosidades:
– O título do filme é uma frase em latim que significa “aos astros”, vinda da obra do poeta Virgílio, que escreveu: sic itur ad astra, ou “assim se vai aos astros”. “Rumo às Estrelas” é exatamente o que Ad Astra significa em latim.
– Há uma cena em que Brad Pitt se emociona de verdade deixando cair lágrimas de verdade. Como eles estava no espaço, as lágrimas não poderiam “cair”, então ele pediu ao diretor para ajustar via efeitos especiais. James Gray disse a Pitt que amou tanto essa atuação na cena que não ia fazer nenhum retoque e que preferia cometer essa licença poética da física espacial para manter a emoção da cena.