Personagem já interpretado nos cinemas por Mick Jagger (!?) e, mais recentemente, Heath Ledger, além de protagonista de telefilmes e séries, o fora da lei irlandês Ned Kelly ganhou esta versão pelo diretor Justin Kurzel, do ótimo “Macbeth: Ambição e Guerra” e do fraco “Assassin’s Creed”. Nada mudou bastante na história ambientada na Austrália colonial do século XIX. A mão de obra irlandesa que ajudou na povoação do país é marginalizada pelo aristocracia inglesa, através do jugo dos policiais deste país, e isto inspira um sentimento de ódio travestido de justiça em Ned Kelly que, logo, organiza uma gangue habitada a praticar roubos e assassinatos.
A ira é perceptível na cena introdutória, em que Ned (Schwerdt, criança) espia pela fresta do casebre que divide com mãe, pai e três irmãos aquela utilizando o sexo como moeda para que o Sargento O’Neill (Hunnam) não revoque a licença de sua taverna. Para piorar, o pai permanece a distância, com a filha no braço, ciente de que a esposa está agindo somente em prol da família. Dá para entender, a partir de então, como Ned começará a perceber os homens de farda, situação que se agrava ainda mais diante da desconstrução e reconstrução de sua personalidade a partir da figura dominante e manipulativa da mãe (Davis). A relação entre estes carrega traços que confundiriam até mesmo Freud. E, embora não haja o caráter edipiano, a influência materna acelera o amadurecimento do garoto (“Você é o homem da casa”), obrigando-o, no processo, a questionar sua recusa à violência, a qual se entrega, a partir de então, como fariam desesperados à loucura.
“Seja o homem que você nasceu para ser” e “Você não é o homem que desejava ser nem o que sua mãe queria que você tivesse sido” são chavões exemplificativos de como o roteiro tenta marretar a premissa de que Ned (MacKay, adulto) seria, até certo ponto, irresponsável pelos atos. A culpa recairia sobre a influência materna, terceiros, por exemplo Harry Power (Crowe) a quem sua mãe confia / vende o garoto, revanchismo e por derradeiro insanidade. Humanizar não significa o desfazimento da responsabilidade de Ned pelos atos praticados, com destaque à passividade com que este se entrega à brutalidade em variados momentos – é um personagem mais reativo, apenas revidando agressões injustas – mesmo que isto esteja em contraste com o mesmo Ned que vimos desferindo golpes com prazer, em uma espécie de clube da luta irlandês para endinheirados ingleses.
A narrativa ainda padece com a incompletude de acontecimentos, cujas consequências não são ilustradas ou sugeridas pela narrativa. Pode ser problema de roteiro ou de montagem, na eventualidade de existirem porções gravadas e não aproveitadas na versão final, mas o certo é que a abordagem fragmentária, em que os pedaços da vida do protagonista são exibidos, com o intento de tentar criar liga com o todo, termina por produzir mais dúvidas do que respostas. E não é o caso de o espectador estar apto a ligar os pontos – como é o caso de um personagem a quem Ned presta visita antes do terceiro capítulo -, e sim de coadjuvantes ou situações escanteadas, por exemplo, o professor de inglês que aparece no terceiro ato.
Por outro lado, a abordagem visual de Justin Kurzel confere certo frescor à história já batida. Sua habilidade, com o auxílio da fotografia de Ari Wegner, em construir sequências marcantes é feito com um prazer visível por sangue misturado com a poeira, sujeira e cores intensas com a presença de Ned, muitas vezes, no centro do quadro em close. Isto evoca um misto de solidão e desespero que auxiliam no resultado mais do que a descartável narração in off, feita a partir do diário que este mantinha consigo. Bastante redundante, a narração tenta pôr o espectador na cabeça do protagonista, embora atinja efeitos negativos ao frisar o óbvio. Certo instante, Ned visita o pai na cadeia com uma faixa que veste orgulhosamente, recebida após o resgate heróico de uma criança que não sabia nadar, apenas para encontrar o espaço sem ninguém. Por mais representativos que são as imagens e o significado destas em nossa cabeça, a direção sente o dever de relatar isto desnecessariamente, quebrando o ritmo.
Já a trilha sonora é eficiente na utilização de temas contemporâneos dentro do contexto de cinema de época. Apesar de não ser inovador, o recurso continua trazendo bons resultados a partir do contraste ou de como certos gêneros musicais pontuam com exatidão o espaço dos sentimentos dos personagens.
Enquanto os atores coadjuvantes tentam estabelecer seus personagens no espaço de tempo reduzido, com ênfase a Nicholas Hoult, um ator que cada vez me impressiona pela escolha de papéis que fogem ao jeitão de bom moço que possui, o duo Essie Davis e George MacKay constrói o núcleo ao redor de que os eventos gravitam. Ela, em especial, é uma mulher áspera, cujas desculpas e remorsos desapareceram em face à vida miserável que manteve desde que chegou na Austrália.
Com 15 minutos finais eletrizantes, nos quais Justin Kurzel demonstra talento na concepção imagética, como ao revelar policiais como personagens etéreos e encapuzados de branco (entendam como preferir), “A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly” ainda não é a biografia definitiva do criminoso mítico, embora satisfaça quem deseja apenas conhecer sua história.
Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.