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Dente de Leite

Dente de Leite

120 minutos

Você parece uma nova pessoa”, afirma Anna à filha Milla, para o que esta lhe responde “Que bom”. É que a forma com que a adolescente de 16 anos resolveu enfrentar a doença terminal, que retornou após um período de remissão, não é com resignação ou tristeza, mas com a adoção de uma postura diferente, de amor louco à vida não importa o tempo que lhe reste. Portanto, a crítica característica materna de que os filhos não são mais como eram antigamente desta vez dá com os burros na água em sua retórica, exigindo que Anna e o marido, Henry, acatam e apóiem não só a mudança no estilo, mas também o namorado que a garota inseriu dentro da família, o traficante de drogas Moses. Da adolescente não emancipada, não sobra mais nada senão o que dá nome ao filme, seu “Dente de Leite”, conservado desde infância e um símbolo sem mistério sobre seu significado.

O que diferencia esta tragicomédia da maioria dos dramas do subgênero doença é a maneira ímpar com que a diretora Shannon Murphy, a partir do roteiro escrito por Rita Kalnejais a partir de sua peça teatral, evita a armadilha do sentimentalismo maniqueísta. Ao invés disto, adota uma postura de enfrentamento com socorro no humor irônico e auto-depreciativo, um dane-se ao futuro para aproveitar, assim, o presente, sem que a narrativa rejeite as soluções de filmes desta natureza. Faz isto com um elenco eficiente e carismático, apto a dar vida a personagens problemáticos, mas humanos e divertidamente esquisitos.

Um deles, o progenitor, Henry, médico psiquiátrica, procura normalizar a situação como faz quando receita drogas que devolvem o paciente ao estado natural, um morno incômodo. Para isto, Ben Mendelsohn emprega o tom de voz monótono – em muito parecido com o do saudoso Alan Rickman – para facilitar a construção de um sujeito que parece receoso em sentir algo. Tão marcante quanto a construção do ator, é o trabalho dos figurinos de Amelie Gebler. Repare como Henry não modifica o estilo de camisa social dentro do gradiente de cores entre cinza e azul, enfatizando externamente o tédio contagiante. Diferentemente, a esposa Anna é artística, impulsiva e amorosa quando não está sob a influência de medicamentos que suprimem seu eu em troca de uma mulher dócil e desligada. E Essie Davis enfatiza o humor inconstante e fluido da personagem com ajuda, de novo, do efeito narrativo dos figurinos que, no caso dela, alterna entre vestidos monocromáticos para florais coloridos.

Enquanto isso, a adoentada Milla é apresentada ao espectador na base da incerteza sobre a plataforma de trem, situação modificada com uma ‘trombada’ do destino na forma de Moses. A relação entre eles dispensa rótulos e parece funcionar a base das regras instituídas na narrativa. As mesmas que criam um dos jantares em família mais divertidos e inusitados e que constrói um vínculo forte a base do estranhamento que certas atitudes provocam em nós – quando deveríamos ser indiferentes, por não nos dizer respeito. A química entre Eliza Scanlen e Toby Wallace, premiado no Festival de Veneza com o prêmio de ator revelação, permite aos atores, sem parecerem pontos fora da curva prejudiciais ao estabelecimento de vínculo com o espectador, explorar a liberdade de ambos. Um, pela circunstância de haver sido expulso de casa; a outra, por rejeitar o martírio e a necessidade de agradar a todos, sem que isto suprima o receio que sente a cada vez que fecha os olhos a noite, um temor melhor ilustrado na cena belíssima em que seu rosto está coberto parcialmente por facho de luz do sol vespertino e por sombras que teimam em avançar.

Bem humorada, a narrativa australiana tem um jeito próprio de explorar a comicidade, mas com o cuidado de não ser equivocada a ponto de rir da doença de modo inconsequente. É por isto que as gags e piadas não envolvem, necessariamente, o estar doente, e sim a reação daqueles ao redor, que remendam os laços familiares que os unem em torno do esforço para proporcionar a felicidade desejada por Milla. A dinâmica familiar, com a queda de braço de Henry e Anna a fim de cumprir o que para esta é um dever conjugal básico, e as frases de efeito do casal, como ao espiar, da janela da cozinha, o divertimento da filha reprovando-se quando o impulso seria admoestá-la, reforçam que o objetivo de Shannon é discutir também a nossa relação com a doença daqueles ao redor.

A adoção da razão de aspecto de 1.66:1 resulta em uma tela mais quadrada do que retangular e, assim, mais claustrofóbica e menos gregária, adequada à narrativa ao ilustrar, de modo visual, o desejo de Milla em permanecer apenas ao lado de quem escolheu estar. E são poucos, sem contar os coadjuvantes cômicos e funcionais dentro da narrativa, como é o caso do garotinho que herda a vaga da protagonista na aula de violino. Já a trilha sonora é inteligente ao expressar o espectro sentimental da narrativa, a partir de composições de Mozart ao eletrônico contemporâneo.

Tendo fortalecido nossa afeição aos personagens, o efeito da tragicomédia (ou dramédia, se preferir) é mais duradouro. Não choramos quando não devemos nem o fazemos apenas ante o choque da doença. A manipulação emocional é mais sutil. Nossas lágrimas são reservadas ao instante adequado, e, quando menos esperamos, o que parecia uma narrativa heterodoxa termina como um drama universal e tocante que não desprezou a importância de manter um frescor narrativo. Um belo debute da cineasta Shannon Murphy.

Crítica publicada durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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