Não existe este espectador que não aprecie histórias reais de como um grupo de idealistas, em busca da verdade, enfrentou o Governo e, de quebra, as estruturas do poder contra a falta de transparência e de responsabilização dos que praticaram crimes com o dinheiro dos contribuintes. Aqui, o roteiro de Scott Z. Burns, que também dirigiu, está interessado em narrar o percurso tortuoso na elaboração e publicação d“O Relatório” por Dan Jones (Driver, no clássico personagem que começa a absorver a carga emocional do trabalho e deixar que esta interfira em sua vida), contratado pela Senadora Feinstein (Benning, em um ótimo trabalho de caracterização) com o objetivo de investigar a política de interrogatórios implementada pela CIA após os atentados de 11 de setembro. Técnicas brutais que envolviam violência, humilhação, privação de sono e afogamento, todas consideradas formas de tortura e, portanto, em afronta aos valores defendidos pelos Estados Unidos.
Diante desta tarefa, a estrutura da narrativa, que já virou um clichê, inicia com um instante fundamental próximo ao terceiro ato, para então recapitular os passos que levaram Dan, o jovem de Rolex que procurou emprego no gabinete do Senador Obama, àquele momento. À medida que Dan encontra seu caminho na papelada da CIA, pois as fitas dos interrogatórios foram ilegalmente destruídas, ele começa a perceber, com a indignação evidente na atuação segura de Adam Driver, inúmeras irregularidades supostamente cometidas a fim de evitar a prática de atentados, mas que foram provadas como sendo ineficientes e, pior, indignas aos presos de guerra. Este escrutínio meticuloso cobra um preço: a vida particular de Dan e, a partir daí, sua estrutura psicológica, abalada a ponto de sequer lembrar em qual mês está. Tudo piora diante das manobras políticas travadas para impedir a publicação do relatório, e de como a estrutura do poder é utilizada para abonar a culpabilidade dos criminosos. Fulano fez isto a mando de beltrano; este, apenas cumpria as ordens de cicrano que, no último giro, respondia diretamente ao Presidente, irresponsável por se tratar de questões de segurança nacional.
Existe, assim, uma energia na forma com que os conflitos são enfrentados a partir de uma queda de braços em forma de diálogos, não na ação propriamente dita. E, por mais que alguns desses sejam exageradamente explicados, em um telefone sem fio que começa com Dan, passa pela chefe de gabinete Marcy Morris (Powell) e encerra com Feinstein, quando não é requentado e rebatido pela CIA, no gesto de desconfiança de que o espectador pudesse perder a mensagem na metade, Scott Z. Burns, ao lado do montador Greg O’Bryant, é hábil em imprimir um ritmo nervoso, como se as conversas fossem, na realidade, uma troca de tiros. Ajuda o fato de não faltarem diálogos inspirados e que mexem com nosso brio, como a ginástica jurídica para explicar por que as técnicas de interrogatório não seriam tortura (mentira, são). E que solução visualmente criativa em adicionar, logo depois do pronunciamento de Ted Brennan (Levine), o diretor da CIA, uma imagem da ponte Golden Gate recoberta de névoa, na alusão à desinformação por este praticada.
Visualmente, a narrativa é eficiente em como ilustra suas linhas do tempo: no passado, a fotografia de Eigil Bryld emprega um filtro amarelado e envelhecido, com uma câmera na mão que denuncia a inconstância e urgência nas decisões tomadas pelo alto escalão da CIA; já no presente, dividido em dois momentos, a câmera está estabilizada com uma alternância do filtro entre o azul e o tradicional, sem esquecer de citar que o design da sala onde Dan e os seus colegas trabalham expõe, de cara, o teto aparente, como se aquela fosse sua prisão por tempo indeterminado.
Ainda assim, existe uma redundância narrativa na quantidade de vezes que Scott Z. Burns precisa repetir a mesma mensagem, como se corresse em círculos ao redor dela mas não tivesse coragem de agarrá-la. Os recursos que o diretor emprega também são limitados, como a passagem semi-incompreensível por palavras-chave sensíveis nos documentos oficiais analisados. E o que afirmar sobre a mão pesada na cena que revela o paradeiro dos terceirizados dentro de um jatinho nababesco?
Ancorado no elenco respeitável e eficiente, “O Relatório” chega a ser incômodo em como submete, à desumanidade na forma da defesa da segurança nacional, homens que, em vários casos, sequer tinham relação com o grupo de Osama Bin Laden. Tão logo começam os criminosos a ser emparedados, inicia-se uma campanha de retaliação que tem tudo a ver com a política no modo com que varre, para debaixo do tapete, as verdades que cansamos de saber e que apenas mereceu a luz do dia não por respeito aos cidadãos, mas porque um ramo do Poder (o Executivo) invadiu outro (o Legislativo).
Se fosse apenas pela opinião pública, continuaríamos achando que afogamento era uma técnica de interrogatório eficiente.
Crítica escrita durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.