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A Vida Invisível

A Vida Invisível

138 minutos

As irmãs Eurídice e Guida são inseparáveis por encontrarem, uma na outra, o eco afetuoso de seus sonhos. O da primeira, ser aceita, como pianista, no Conservatório de Viena. O da outra, casar com um marinheiro grego que mal conhece meia dúzia de palavras na língua portuguesa. O destino de ambas é traçado quando Guida decide fugir de casa para Grécia, a fim de viver seu romance, provocando um rebuliço em sua família patriarcal conservadora e culminando, então, no casamento a contragosto de Eurídice com Antenor. Entretanto, ao retornar à capital carioca grávida e desacompanhada do marido, com quem terminou, Guida é mandada embora do antigo lar pelo pai rígido e proibida de se comunicar com Eurídice, induzida a crer que a irmã realizou o sonho de viajar à Europa. Através de cartas que jamais encontram o destino e que verbalizam um amor que transborda, testemunhamos a separação destas mulheres e a jornada de ambas no Rio de Janeiro da década de 50.

Eu não consigo fazer meus dedos pararem de tocar”, comentava Eurídice diante do mesmo piano que, após casada, converteu-se em válvula de escape. Não que Antenor (Duvivier) seja uma pessoa ruim, ao menos é o que acreditamos, ele é somente um homem aprisionado ao machismo institucionalizado do tempo, na crença equivocada de que o papel de Eurídice é de ser mãe, cuidar do lar e prover suas necessidades sexuais. Ele não é muito diferente, a propósito, do “português ignorante do século passado” que criou sua esposa e que rejeitou a cunhada que sequer pôde conhecer, apesar de o rosto jocoso e manso de Gregório Duvivier enganar-nos do contrário, em uma escalação felicíssima da produção. Apesar de oprimida por Antenor, Eurídice ainda conserva a esperança de ser mais do que “uma promessa”.

Enquanto isso, Guida batalha pelo próprio sustento acumulando empregos e criando, com o auxílio de Filomena (Santos), o filho. “Sorte a dele”, afirma pragmática ao descobrir o sexo do garoto, ciente de que sua vida será menos amarga do que a sua em razão do gênero. Não é difícil constatar isto quando Guida é impedida de obter o passaporte para o filho sem a autorização do pai, cujo nome sequer consta na certidão de nascimento. Um entrave que, decerto, não existiria caso fosse um pai realizando o mesmo pedido, sem o aval materno. Não é diferente sua rotina diário, devendo “agradecer” por estar empregada no porto sendo mulher.

Diante desta narrativa dupla, unida pelas epístolas narradas in off, o diretor Karim Aïnouz (de “Praia do Futuro” e “Madame Satã”), a partir do livro de Martha Batalha, investe em temas afetos ao feminismo, expondo a necessidade de modificação da estrutura societária em prol daquela mais igualitária e que respeite o direito da mulher de se determinar como desejar, ao invés de permanece à sombra dos homens. Karim é como Chico, filho de Guida, que ao ser repreendido por entrar no banheiro feminino, responde “Eu sou criança”. É um efeito semelhante àquele do garotinho de “Bacurau”, que retruca a dúvida preconceituosa da ‘turista’ quanto ao termo para denominar quem nasce no distrito com um “É gente!”. A inocência infantil é a forma como os diretores materializam que a desigualdade de gênero (ou a discriminação social e regional) é coisa de adulto que crê que quarto de menino deve ser azul.

Não faltam evidências na narrativa de como o tratamento dos homens não apenas conserva afastadas irmãs que se amam, como as priva de desenvolver seus talentos e potencialidades. Neste cenário, as atuações tocantes de Carol Duarte e Julia Stockler destacam a desilusão e desesperança de quem, apesar de lutar com empenho e determinação para conseguir o que merece, não pode vencer somente porque as cartas do jogo estão marcadas. Mesmo diante da derrota inevitável, é comovente assistir ao esforço de Eurídice e Guida em obter as pistas que as levem uma a outra. Se unidas, eram fortes, como em sororidade; separadas, viram só reminiscências de quando não precisam escrever para não esquecer uma da outra.

Visualmente, a narrativa é um melodrama tropical como se autodenomina. A fotografia granulada de Hélène Louvart revela a natureza que abraça o Rio de Janeiro do período, com quintais repletos de árvores e plantas que contribuem com calor e umidade desconfortáveis, e assim os personagens sempre aparentam estar suados. A dinâmica visual alcança o design de produção (por exemplo, as cortinas florais) e os figurinos estampados ou coloridos. Mas não espere os tons da filmografia de Pedro Almodóvar, e sim cores marcadas por sombras que pairam a todo instante, como se tentassem sufocar suas co-protagonistas.

Uma escolha acertada para nos representar no Oscar do próximo ano – já que, diferente de “Bacurau”, seu tema é mais acessível por ser universal e seu gênero, o melodrama, melhor aceito na Academia -, “A Vida Invisível” ainda se dá o luxo de contar com a participação especial de Fernanda Montenegro em momentos preciosos. Sobre a atriz nonagenária, meus adjetivos não seriam suficientes para adjetivar a emoção proporcionada pela dama maior do cinema nacional que, entretanto, não causaria tanto furor se não estivéssemos diante de uma narrativa melancolicamente apaixonante.

Uma obra para encher de orgulho nosso país.

Crítica escrita na cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

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