A história real da primeira mulher milionária por conta própria dos Estados Unidos
MINISSÉRIE EM 4 EPISÓDIOS DISPONÍVEL NA NETFLIX
Inspiradora? Sim. Esta minissérie em 4-episódios, comandada pelas diretores afro-americanas Kasi Lemmons (de “Harriet”) e DeMane Davis, compreende a importância de Sarah Walker, a primeira mulher milionária por conta própria, como modelo para a geração contemporânea. Não meramente do ponto de vista feminista, numa época em que mulheres encastelavam-se na cozinha, preparando comes e bebes, enquanto seus maridos debatiam assuntos políticos e sociais, mas também no aspecto racial, décadas após a abolição da escravatura, com ênfase na visão empreendedora de Sarah, que enxergou, na beleza tipicamente afro, um nicho ainda não explorado no mercado de cosméticos capilares no início do século passado (precisamente, em 1908).
A pertinência da biografia, entretanto, não sobrevive ao escrutínio das ferramentas narrativas empregadas pela dupla de diretoras (cada uma responsável por 2 episódios), e, considerando que “Harriet” também subaproveitou a personagem central em um roteiro trivial e pedestre, a sensação é a de estarmos pisando no mesmo terreno: uma história importante, abordada de maneira simplória. Já começa na cena inicial, em que Sarah (Spencer) calça as luvas de boxe e prepara-se para entrar no ringue, ilustrando o elemento metafórico que estará presente em cada um dos capítulos da minissérie (números musicais, a Garota Walker ou as orquídeas são os demais). Se a ideia era retratar, com imaginação, os percalços na caminhada de sucesso de Sarah, a execução amadora deixa a desejar, intercalando instantes no ringue e o avançar do capítulo através de uma montagem que quebra o ritmo da narrativa, em vez de complementá-la. Melhor sorte tem a direção nos capítulos seguintes, pois, aí sim, os símbolos introduzidos caminham ao encontro da narrativa, não contra esta.
Como um exemplar tradicional de cinema de época, que investe em recursos modernos a fim de conferir jovialidade e atemporalidade à história, a narrativa abusa da montagem descolada, com acelerações (o fast-forward) e cortes rápidos ao ritmo da seleção musical funk e hip hop. Se por um lado, esta decisão estilística casa perfeitamente com a atuação bem humorada e expansiva de Tiffany Haddish, que interpreta Lelia, a filha única de Sarah, por outro, esbarra na própria natureza da narrativa, que investe em clichês tão antiquados que deveriam fazer parte de coleção permanente de museu. Não faltam ao roteiro a rixa entre mulheres que demoram a descobrir que a desunião apenas ajuda quem deseja oprimi-las, o companheiro que pretende eximir-se da infidelidade acusando a companheira de negligência e o escudeiro fiel que resolve uma questão, contrário a sua serenidade, na troca de sopapos.
O roteiro simplifica a trajetória profissional de Sarah Walker ao realizar saltos ilógicos dentro da estrutura da narrativa: logo depois de ser humilhada, Sarah bola seu produto revolucionário e melhor do que de sua competidora direta, Addie Monroe, mesmo sem possuir conhecimento de química ou auxílio neste sentido. Noutro, em Indianápolis, após o fracasso da inauguração e o ultimato de duas semanas de CJ, seu marido, o salão de beleza aparece abarrotado de clientes, já levando a protagonista a cogitar expandi-lo e construir uma fábrica. Um incêndio, atrasa estes planos, mas efeitos são diluídos na trama e não importam em obstáculos senão um dissabor. Piora, bastante, na elipse – termo usado para denotar a passagem do tempo – do terceiro ao quarto capítulo, quando, apesar de ser traída por empregadas e abandonada pelo marido, Sarah alcança a condição de milionária sem que a narrativa resolva os conflitos então abertos (não estou contando spoilers, mas recordando a sinopse).
Além disto, o roteiro apela a coincidências mal trabalhadas, como aquela em que CJ invade, bêbado, a reunião de investidores dispostos a expandir a fábrica (claro que teria que ser neste momento) ou em que Addie aparece no beiral da porta no momento em que Sarah realiza seu discurso poderoso às mulheres na convenção. Por falar em Addie, apesar de ser ficcional, sua inspiração veio de Annie Turnbo Malone, a pioneira no mercado de beleza voltado à mulher negra, e por mais que torça o nariz para a construção e o desenvolvimento da personagem dentro do roteiro que tenta transformá-la, a ferro e fogo, em vilã de quinta categoria, Carmen Ejogo confere-lhe a profundidade para ser mais do que isto. Vaidosa, o que move Addie não é o fracasso profissional, mas a ideia de ser derrotada por alguém que acredita não ser bela igual a ela, o que não a impede de reconhecer, à distância, as vitórias de Sarah.
Que, interpretada pela intensa Octavia Spencer, prosperou contrariamente as expectativas da sociedade. Tentando evitar, o quanto lhe permite o roteiro, o estereótipo da mulher oprimida, mas usando isto como motivação para alcançar seus sonhos, Octavia encara Sarah mais como uma mulher de negócios, que enxerga além do presente, sem abandonar a consciência racial. Por decisões questionáveis – Addie, numa reveladora ligação telefônica com a mãe, a chama de “mulher horrível”, não no aspecto da aparência, mas da personalidade – , Sarah é mais complexa do que a heroína antevista no primeiro capítulo. Seja na forma como exige de sua filha, homossexual, netos, seja ao mentir à CJ em relação ao anúncio por este elaborado, seja no crime empresarial que comete, Sarah também atuou na margem cinzenta do mundo dos negócios quando precisou, tornando-a mais interessante do que caso houvesse logrado êxito sem isto.
Com fatos e “fatos”, esta minissérie biográfica acerta ainda nos penteados, e perceba como, no instante em que mãe e filha enfim estão na mesma página em relação aos negócios, Sarah e Lelia apresentam o mesmo cabelo. Por causa de detalhes iguais a este, podemos perdoar, em parte, a superficialidade e a conveniência de uma narrativa mais importante pela história contada do que pela forma como isto é feito.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.