É reconfortante saber como a arte rejuvenesce e revigora, e aquela apresentada em “Aos Pedaços” é tanto símbolo da experiência de um artista a um ano de ser nonagenário quanto é de que não existe limite de idade para sonhar histórias e reproduzi-las em imagens que, a maior parte do público médio, associaria a um(a) jovem cineasta experimental, não ao diretor moçambicano e radicado no Brasil de “Os Fuzis” ou “Ópera do Malandro”.
A ideia do roteiro, antes denominado “O Tempo à Faca”, surgiu antes de 2005 e ganhou páginas com a colaboração de Luciana Mazzotti. Conta a história de Eurico Cruz, um homem atormentado após a ameaça de morte assinada apenas com um ‘A’. Casado com duas mulheres, com o mesmo nome e signo (Ana e Anna) e morar em mesmas casas, uma encravada no deserto e outra de frente ao mar, Eurico ainda é visitado por um pastor, que “nunca vem a toa”, mas somente quando chamado para salvá-lo do quê ainda precisa saber, e esta presença, associado à pressão bígama de duplos, conduz este kafkaniano personagem às raízes do eu. E calha lembrar de mencionar que Eurico confidencia a vida a uma lagosta e também narradora.
É fácil admirar a estética da insanidade / irrealidade adotada por Ruy Guerra: um preto e braço de alto contraste e baixa exposição, com uma fotografia caprichadíssima de Pablo Baião que, arrisco, seja o maior atrativo do projeto. O p & b também é trapaceiro, como é a narrativa, pois confunde ou atordoa os sentidos, ou às vezes o complementa, como o caso da rosa preta que meu olhar somente conseguiu vê-la em vermelho. A confusão que mencionei é acentuada pelo jogo de espelhos literais ou não, além da cena em que Ana e Anna estão juntas. Vemos esta ou aquela agir da mesma forma, e perdemos o contato com a realidade da mesma maneira que Eurico o faz. Colabora com a sensação a câmera livre que passeia no incomum, como o movimento brusco de chicote, ou na consciência de si, na quebra da quarta parede. Assim, o mundo acaba perdendo o sentido quando pensávamos que o havíamos compreendido.
Se o visual estilizado concretiza a ideia do realizador, a verborragia, não. Uma verborragia que, por mais evocativa que seja, anda em círculos em torno da mesma ideia, sem desenvolvê-la. É estanque a partir do momento em que, muito cedo, Eurico confessa ser “parasita de si mesmo”, e após disto apenas sobrevoa o mesmo pensamento com outras palavras: “O homem que eu sou e que deveria ser é um prisioneiro dentro de mim”, “Eu não sou Eurico Cruz, mas um pedaço dele” e todas as reflexões subsequentes. A jornada de Eurico para livrar-se de seus demônios interiores acaba enfraquecida pelas altercações vazias com os coadjuvantes dentro do espaço fílmico hermético, do tamanho inclusive da psique humana embora com vista para o mar.
À medida que a narrativa penetra na mente delirante desta mente presa à dicotomias (luz e sombra, culpa e perdão, Ana e Anna), começa também a desgarrar daquilo que a sustentaria, o mistério mais e mais óbvio, e a agarrar em excesso a Eurico, que por melhor interpretado que seja por Emílio de Mello, é o tipo de protagonista que não atiça simpatia e identificação, mas antipatia e reprovação. Um “tubarão triste”, o que quer que isto signifique, um “profissional da hipocrisia”, um homem cujos devaneios resultam na conclusão mais óbvia: o problema sou eu. Enquanto isto, Christiana Ubach e Simone Spoladore trabalham a partir de conceitos, não personagens, e evocam, com a teatralidade típica de obras iguais a esta, sentimentos intensos e contrastantes que reforçam o estágio paranoico do protagonista.
Ao término deste thriller psicológico mais extenso do que a proposta exigia, se não está à altura de “Quase Memória”, ao menos “Aos Pedaços” serve como um bálsamo a quem reencontra Ruy Guerra mais jovial e audacioso, porém caótico e redundante.
Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.