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Aos Pedaços

Aos Pedaços

92 minutos

É reconfortante saber como a arte rejuvenesce e revigora, e aquela apresentada em “Aos Pedaços” é tanto símbolo da experiência de um artista a um ano de ser nonagenário quanto é de que não existe limite de idade para sonhar histórias e reproduzi-las em imagens que, a maior parte do público médio, associaria a um(a) jovem cineasta experimental, não ao diretor moçambicano e radicado no Brasil de “Os Fuzis” ou “Ópera do Malandro”.

A ideia do roteiro, antes denominado “O Tempo à Faca”, surgiu antes de 2005 e ganhou páginas com a colaboração de Luciana Mazzotti. Conta a história de Eurico Cruz, um homem atormentado após a ameaça de morte assinada apenas com um ‘A’. Casado com duas mulheres, com o mesmo nome e signo (Ana e Anna) e morar em mesmas casas, uma encravada no deserto e outra de frente ao mar, Eurico ainda é visitado por um pastor, que “nunca vem a toa”, mas somente quando chamado para salvá-lo do quê ainda precisa saber, e esta presença, associado à pressão bígama de duplos, conduz este kafkaniano personagem às raízes do eu. E calha lembrar de mencionar que Eurico confidencia a vida a uma lagosta e também narradora.

É fácil admirar a estética da insanidade / irrealidade adotada por Ruy Guerra: um preto e braço de alto contraste e baixa exposição, com uma fotografia caprichadíssima de Pablo Baião que, arrisco, seja o maior atrativo do projeto. O p & b também é trapaceiro, como é a narrativa, pois confunde ou atordoa os sentidos, ou às vezes o complementa, como o caso da rosa preta que meu olhar somente conseguiu vê-la em vermelho. A confusão que mencionei é acentuada pelo jogo de espelhos literais ou não, além da cena em que Ana e Anna estão juntas. Vemos esta ou aquela agir da mesma forma, e perdemos o contato com a realidade da mesma maneira que Eurico o faz. Colabora com a sensação a câmera livre que passeia no incomum, como o movimento brusco de chicote, ou na consciência de si, na quebra da quarta parede. Assim, o mundo acaba perdendo o sentido quando pensávamos que o havíamos compreendido.

Se o visual estilizado concretiza a ideia do realizador, a verborragia, não. Uma verborragia que, por mais evocativa que seja, anda em círculos em torno da mesma ideia, sem desenvolvê-la. É estanque a partir do momento em que, muito cedo, Eurico confessa ser “parasita de si mesmo”, e após disto apenas sobrevoa o mesmo pensamento com outras palavras: “O homem que eu sou e que deveria ser é um prisioneiro dentro de mim”, “Eu não sou Eurico Cruz, mas um pedaço dele” e todas as reflexões subsequentes. A jornada de Eurico para livrar-se de seus demônios interiores acaba enfraquecida pelas altercações vazias com os coadjuvantes dentro do espaço fílmico hermético, do tamanho inclusive da psique humana embora com vista para o mar.

À medida que a narrativa penetra na mente delirante desta mente presa à dicotomias (luz e sombra, culpa e perdão, Ana e Anna), começa também a desgarrar daquilo que a sustentaria, o mistério mais e mais óbvio, e a agarrar em excesso a Eurico, que por melhor interpretado que seja por Emílio de Mello, é o tipo de protagonista que não atiça simpatia e identificação, mas antipatia e reprovação. Um “tubarão triste”, o que quer que isto signifique, um “profissional da hipocrisia”, um homem cujos devaneios resultam na conclusão mais óbvia: o problema sou eu. Enquanto isto, Christiana Ubach e Simone Spoladore trabalham a partir de conceitos, não personagens, e evocam, com a teatralidade típica de obras iguais a esta, sentimentos intensos e contrastantes que reforçam o estágio paranoico do protagonista.

Ao término deste thriller psicológico mais extenso do que a proposta exigia, se não está à altura de “Quase Memória”, ao menos “Aos Pedaços” serve como um bálsamo a quem reencontra Ruy Guerra mais jovial e audacioso, porém caótico e redundante.

Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.

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