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O Samba é Primo do Jazz

Nem precisa ser maranhense, como eu, para estremecer apenas ao escutar a voz grave e poderosa de Alcione Nazareth. A cantora e também musicista é um monumento da música popular brasileira com tamanha envergadura que é natural enxergar o fascínio despertado na experiente diretora Angela Zoé, que já havia comandado os documentários a respeito do cartunista Henrique de Souza, o Henfil, e do compositor Ary Barroso. Entretanto, este mesmo encantamento dita uma abordagem reverente e congratulatória, ao encontro de que a narrativa caminha conscientemente. Não existe o objetivo de analisar a carreira (ou a vida) da cantora em tons de cinza ou de lançar luz em eventuais incoerências de que nem mesmo os mais santos escaparam. É uma decisão criativa, e é por esta que a narrativa, que tomou de empréstimo o nome de uma das canções da artista, deve ser analisada.

Neste sentido, Angela Zoé acompanha Alcione durante os ensaios descontraídos para um show que realizará em comemoração aos 45 anos de carreira e que contará com a presença icônica de Maria Bethânia, ou a viagem à Portugal, onde a biografada revela uma espiritualidade aberta a dogmas além daqueles de seu catolicismo, e também testemunha a recepção admirável feita pela Estação Primeira de Mangueira. Angela entrevista as irmãs e empresárias da artista, que ajudam na segunda voz nos shows, e remete o aprendizado e parte do talento ao pai, professor de música, à infância “pobre e divertida” e à coragem de viajar ao Rio de Janeiro e bater de clube em clube, tendo sido esta experiência que a preparou para interpretar os mais variados genros musicais.

Não faltam relatos para quem procura informações adicionais a respeito da história de Alcione – como as influências musicais no Bumba meu Boi, Tambor de Crioula e Jazz, seus projetos sociais ou seu amor ao Maranhão –, nem performances em cima do palco, enquadradas com uma merecida contemplação pela câmera que está determinada a admirá-la, não a questionar. Até quando Alcione está mais a vontade, ao disparar um palavrão (“Porra!”) depois de errar o refrão de uma canção, o único sentimento existente nos 72 minutos de duração é o de admiração, e reiterá-lo é o que a narrativa proporciona, como se dedicada à tarefa de chancelar sua trajetória.

Não deveria ser somente este o papel do cinema, e por mais que tenha sentido falta de um algo mais inominável por não estar lá, ninguém está em condição de substituir a direção e contar uma história como desejaria contar. Cada filme é um polaroide do processo construtivo da arte, e o de “O Samba é Primo do Jazz” é uma evidência da missão de biografar em vida uma artista maior do que esta, e cuja personalidade carismática e naturalidade contagiante extravasam indomavelmente por toda a narrativa.

Assim, o fato de o documentário ser brando, elogioso e conivente sem um enfrentamento não é, de modo algum, um demérito por si só, mas um claro indicativo da pretensão de Angela Zóe resolveu e do que pôde realizar: se não é uma biografia que enfatizasse os aspectos turvos da trajetória da cantora e, assim, expusesse a mulher mais do que o mito, é uma que a apresentará a gerações que a não conheciam e também incentivará quem precisa de um empurrão para destravar a Alcina que há dentro de si.

Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.

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