Jéssica cursa a disciplina de estágio supervisionado da faculdade de psicologia, responsável pelo acompanhamento terapêutico de Bárbara, uma mulher internada com transtorno de personalidade limítrofe (ou borderline). Ambas são mães e viveram uma experiência na infância que moldou, em algum grau, suas personalidades na idade adulta. Assim, no primeiro contato, existe um fio comum que conecta estas mulheres com histórias diferentes: uma, Bárbara, “a promessa que não se cumpriu… uma espécie de bomba relógio”; a outra, Jéssica, alguém por quem ninguém se interessa e que também não se interessa por ninguém. A diretora e roteirista Cibele Amaral debate a depressão e as tendências suicidas, temas de seu conhecimento de quando era psicóloga, vestidas com a roupa tradicional deste tipo de narrativa.
O azul contamina a paleta de cores: a residência reduzida onde Jéssica e Joyce moram não tem cor e sem esta, não tem vida. A depressão aguda acompanha silenciosamente a protagonista, mesmo que esta não perceba: as cadeiras da universidade de psicologia, os figurinos, o saguão do prédio onde é recepcionista, para onde quer que olhemos, este azul mórbido está presente. Não existe mistério no que esta cor representa cinematograficamente, até vir o amarelo, introduzido por Bárbara, mudar a estética visual da narrativa: é uma cor discreta, presente na peça de roupa ou no pano de fundo, e que, ao lado do pontual vermelho, sugere as alternâncias de humor características deste transtorno psicológico. O amarelo também estabelece uma ligação com o filho durante a cena do jantar na casa do ex-marido.
Visualmente, o trabalho de Cibele em colaboração com o diretor de fotografia Maurício Franco, é bastante admirável: apesar de a câmera na mão ou de o tom azul terem significados acessíveis e comuns, isto não significa que as composições narrativas não ajudem a acentuar a solidão de Jéssica ou a instabilidade emocional de Bárbara com competência. E a diretora ainda encontra nas matizes do terror uma maneira de enfrentar o monstro da doença psíquica: ciente de que o papel da arte é refletir em torno de temas difíceis, Cibele enfrenta a depressão, o suicídio e o estigma em torno do assunto na mãe de olhos costurados que não encara a própria filha, uma representação metafórica da criação de Jessica. Mesmo uma homenagem à cena clássica de “O Iluminado”, o plano de baixo para cima de Jack Torrance, ganha uma reinterpretação menos aterrorizadora.
Entretanto, embora talentosa na construção visual, basta reparar como a diretora comunica com precisão o que acontece nos 5 minuto finais, Cibele não é tão bem sucedida em um roteiro repleto de respostas fáceis e chavões que simplificam ou estereotipam quadros psíquicos graves, em vez de aprofundá-los. Mesmo as personagens de Cristiane Oliveira, Maria Paula e Elisa Luciana somente desempenham as funções acessórias de expor, ao espectador através dos personagens, as questões psiquiátricas: é como se estas servissem a uma função fora da narrativa, não dentro dela; são menos personagens e mais artifícios para pegar o público pela mão e explicar, didaticamente, por que, por exemplo, Jéssica e Bárbara não podem ser amigos. Já a estrutura, após amarrar e intercalar uma na outra, opta por uma separação artificialmente brusca para deixá-las resolver, individualmente, seus problemas pessoais (a Jéssica diante da mãe, em Goiás; a fragilidade de Bárbara na luta em obter a guarda do filho).
Ambas, Carolina Monte Rosa, asfixiada e introvertida, e Bárbara Paz, emocionalmente intensa, enriquecem essas personagens vítimas do descaso da sociedade e, infelizmente devo pontuar, de um roteiro. Este promove cenas incoerentes, como aquela havida dentro de uma danceteria, em que Jéssica lança o ultimato, “eu não posso sair com você, não sou sua amiga”, esquecendo que, do outro lado da tela, o público está diante de uma cena em que ambas saíram para beber e divertirem-se. E é ainda mais frustrante saber que esta cena é o ponto da trama que dirige a narrativa ao clímax, cuja construção artificial enfraquece o impacto do que acontecerá nos minutos seguintes.
Tudo isto reduz o impacto da história, mas não a coragem narrativa de trazer um tema tabu e estigmatizado, mal debatido na sociedade, às telas. Não apenas no Setembro Amarelo, mas todo dia, devíamos nos perguntar Por Que Você Não Chora?. A resposta pode não agradar a todos, assim como esta narrativa, embora vá cumprir o papel da arte de estimular a reflexão ou, também nos termos do filme, abrir os olhos de uma vez por todas.
Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.